A manhã de 23 de março de 1971 encontrou o jovem advogado de 26 anos, Sérgio Moura Barbosa, escrevendo uma carta em seu quarto de pensão no bairro de Indianópolis, na capital de São Paulo. Os bigodes bem aparados e as longas suíças contrastavam com o aspecto conturbado de seu rosto, que não conseguia esconder a crise pela qual estava passando.
Três frases foram colocadas em destaque na primeira folha da carta: “A Revolução nao tem prazo e nem pressa"; "Não pedimos licença a ninguém para praticar atos revolucionários”; e "Não devemos ter medo de errar. É preferível errar fazendo do que nada fazer". Em torno de cada frase, todas de Carlos Marighela, o jovem tecia ilações próprias, tiradas de sua experiência revolucionária como ativo militante da Ação Libertadora Nacional (ALN).
Ao mesmo tempo, lembrava-se das profundas transformações que ocorreram em sua vida e em seu pensamento, desde 1967, quando era militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e estudante de Sociologia Política da Universidade Mackenzie, em São Paulo. Pensava casar-se com Maria Inês e já estava iniciando a montagem de um apartamento na Rua da Consolação.
Naquela época, as concepções militaristas exportadas por Fidel Castro e Che Guevara empolgavam os jovens, e Marighela surgia como o líder comunista que os levaria à tomada do poder através da luta armada.
Impetuoso, desprendido e idealista, largou o PCB e integrou-se ao agrupamento de Marighela, que, no início ,de 1968, daria origem à ALN. Naquela manhã, a carta servia como repositório de suas dúvidas: “Faço esses comentários a propósito da situação em que nos encontramos: completa defensiva e absoluta falta de imaginação para sairmos dela. O desafio que se nos apresenta no momento atual é dos mais sérios, na medida em que está em jogo a própria confiança no método de luta que adotamos. O impasse que nos encontramos ameaça comprometer o movimento revolucionário brasileiro, levando-o, no mínimo, à estagnação e, no máximo, à extinção.”
Esse tom pessimista estava muito longe das esperanças que depositara nos métodos revolucionários cubanos. Lembrava-se de sua prisão, em fins de julho de 1968, quando fora denunciado por estar pretendendo realizar um curso de guerrilha em Cuba.
Conseguindo esconder suas ligações com a ALN, em poucos dias foi liberado. Lembrava-se, também, da sua primeira tentativa para ir a Havana, através de Roma, quando foi detido, em 6 de agosto de 1968, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Conduzido à Policia do Exército, foi liberado três dias depois. Finalmente, conseguindo o seu intento, permaneceu quase dois anos em Cuba, usando o codinome de "Carlos". Aprendeu a lidar com armamentos e explosivos, a executar sabotagens, a realizar assaltos e familiarizou-se com as técnicas de guerrilhas urbana e rural. Em junho de 1970, voltou ao Brasil, retornando suas ligações com a ALN.
Em face de sua inteligência aguda e dos conhecimentos que trazia de Cuba, rapidamente ascendeu na hierarquia da ALN, passando a trabalhar em nível de sua Coordenação Nacional. Foi quando, em 23 de outubro de 1970, um segundo golpe atingiu duramente a ALN, com a morte de seu líder Joaquim Câmara Ferreira, o "Velho" ou "Toledo", quase um ano após a morte de Marighela (em novembro de 1979). Lembravase que, durante 4 meses, ficou sem ligações com a organização. Premido pela insegurança, não compareceu a vários pontos, sendo destituído da Coordenação Nacional. Não estava concordando com a direção empreendida à ALN e escreveu, na carta, que havia entrado "em entendimento com outros companheiros igualmente em desacordo com a condução dada ao nosso movimento”.
No início de fevereiro de 1971, foi chamado para uma discussão com a Coordenação Nacional e, na carta, assim descreveu a reunião: “Ao tomarem conhecimento de meu contato paralelo, os companheiros do Comando chamaram-me para uma discussão, a qual transcorreu num clima pouco amistoso, inclusive com o emprego, pelas duas partes, de palavras inconvenientes para uma discussão política. Confesso que fiquei surpreso com a reação dos companheiros por não denotarem qualquer senso de autocrítica e somente entenderem minha conduta como um simples ato de indisciplina”. Não sabia, o jovem, que a ALN suspeitava de que houvesse traído o "Velho".
Com o crescimento de suas indecisões, não aceitou, de pronto, a função que lhe foi oferecida de ser o coordenador da ALN na Guanabara. Ao aceitá-la, após um período de reflexão, a proposta já fora cancelada. Foi, então, integrado a um "Grupo de Fogo" da ALN em São Paulo, no qual participara de diversos assaltos, até aquela manhã. Seu descontentamento, entretanto, era visível: "Fui integrado nesse grupo, esperando que, finalmente, pudesse trabalhar dentro de uma certa faixa de autonomia e pudesse aplicar meus conhecimentos e técnicas em prol do movimento. Aí permaneci por quase dois meses, e qual não foi a minha decepção ao verificar que também aí estava anulado... Tive a sensação de castração política”. Não sabia, o jovem, que a ALN estava considerando o seu trabalho, no "Grupo de Fogo” como desgastante e "ainda somado à vacilação diante do inimigo".
No final da carta, Sérgio, mantendo a ilusão revolucionária, teceu comentários acerca de sua saída da ALN: “Assim, já não há nenhuma possibilidade de continuar tolerando os erros e omissões políticas de uma direção que já teve a oportunidade de se corrigir e não o fez.
Em sã consciência, jamais poderei ser acusado de arrivista, oportunista ou derrotista.
Não vacilo e não tenho dúvidas quanto às minhas convicções.
Continuarei trabalhando pela Revolução, pois ela é o meu único compromisso.
Procurarei onde possa ser efetivamente útil ao movimento e sobre isto conversaremos pessoalmente.”
Ao final, assinava "Vicente", o codinome que havia passado a usar depois de seu regresso de Cuba.
Terminada a redação, pegou o seu revólver calibre 38 e uma lata cheia de balas com um pavio à guisa de bomba caseira e saiu para “cobrir um ponto” com um militante da ALN. Não sabia que seria traído. Não sabia, inclusive, que o descontentamento da ALN era tanto que ele já havia sido submetido, e condenado, a um “Tribunal Revolucionário”.
No final da tarde, circulava, procedendo às costumeiras evasivas, pelas ruas do Jardim Europa, tradicional bairro paulistano. Na altura do número 405 da Rua Caçapava, aproximou-se um Volkswagen grená, com dois ocupantes, que dispararam mais de 10 tiros de revólver 38 e pistola 9rnm. Um Gálaxie, com 3 elementos, dava cobertura à ação. Apesar da reação do jovem, que chegou a descarregar sua arma, foi atingido por 8 disparos. Morto na calçada, seus olhos abertos pareciam traduzir a surpresa de ter reconhecido seus assassinos. Da ação faziam parte seus companheiros da direção nacional de organização subversiva Yuri Xavier Pereira e Carlos EuGênio Sarmento da Paz (“Clemente”), este último o autor dos disparos fatais.
Ao lado do corpo, foram jogados panfletos, nos quais a ALN assumia a autoria do “justiçamento”. São sugestivos os seguintes trechos desse “Comunicado”:
“A Ação Libertadora Nacional (ALN) executou, dia 23 de Março de 1971, Márcio Leite Toledo.
Esta execução teve o fim de resguardar a organização...
Uma organização revolucionária, em guerra declarada, não pode permitir a quem tenha uma série de informações como as que possuía, vacilações desta espécie, muito menos uma defecção daste grau em suas fileiras...
Tolerância e conciliação tiveram funestas conseqüências na revolução brasileira.
Tempera-nos saber compreender o momento que passa a guerra revolucionária e nossa responsabilidade diante dela é nossa palavra de ordem revolucionária.
Ao assumir a responsabilidade na organização, cada quadro deve analisar sua capacidade e seu preparo.
Depois disto não se permitem recuos...
A revolução não admitirá recuos!”
O jovem não era "advogado" e nem se chamava "Sérgio Moura Barbosa", "Carlos" ou "Vicente". Seu nome verdadeiro era Márcio Leite Toledo.
Enterrado dias depois em Bauru, seu irmão mais velho, então Deputado Federal por São Pablo, declarou saber que ele havia sido morto pelos próprios companheiros comunistas.
4º Ato: Violência Nunca Mais!
São marcos como os descritos - fruto de mentes deturpadas pela ideologia - que balizam o caminho sangrento e estéril do terrorismo, que por quase uma década enxovalhou a cultura nacional, intranquilizando e enchendo, de dor a família brasileira.
Essas ações degradantes, que acabam de ser narradas, são tidas como atos heróicos pelos seguidores da ideologia que considera “a violência como o motor da história". Para essas pessoas, todos os meios são válidos e justificáveis pelos fins políticos que almejam alcançar. Acolitados por seus iguais, seus nomes, hoje, designam ruas, praças e até escolas no Rio de Janeiro e em outros locais do País.
Os inquéritos para apuração desses atos criminosos contra a pessoa humana também transitaram na Justiça Militar entre abril de 1964 e março de 1979. Porém, essas pessoas mortas e feridas - onde se incluem mulheres e até crianças e, na maioria, completamente alheias ao enfrentamento ideológico -, por serem inocentes e não terroristas, não estão incluldas na categoria daquelas protegidas pelos "direitos humanos" de certas sinecuras e nem partilham de urna "humanidade comum" de certas igrejas. Nem parece que a imagem de Deus, estampada na pessoa humana, é sempre única.
A razão, porem, e muito simples. Essa Igreja está sabidamente infiltrada, assim como o Movimento de Direitos Humanos dominado, por agentes dessa mesma ideologia, como ficará documentado ao longo deste livro.
Corno gostaríamos de poder crer que esses atos cruéis de assassinatos premeditados, assaltos a mão armada, atentados e seqüestros com fins políticos e qualquer tipo de violência à pessoa humana nao viessem a ocorrer no Brasil, nunca mais!
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