Lula discursou ontem na inauguração de uma escola técnica federal em Campina Grande, na Paraíba (ver post) e afirmou que “o papel do governo federal é o de uma mãe”. Até outro dia, ele diria que é o de um “pai”. Mas quer Dilma Rousseff como sua sucessora, daí a mãe. Não dá ponto sem nó. Voltamos no tempo bem uns 60 anos. Aí o presidente decidiu fazer um pouco de poesia da miséria, mas agora em sua versão exitosa, virtuosa: escolheu uma garota, Isabela de Oliveira Araújo, como símbolo do “Bolsa Família”, que ele e quase toda a imprensa chamam de “programa de transferência de renda”.
No governo FHC, que atendia a cinco milhões de famílias com assistência direta — na abastança, Lula ampliou para 11 milhões —, as ações do que agora se chama Bolsa Família eram classificadas pelos petistas (e pela imprensa) como “medidas compensatórias para minimizar os efeitos do reajuste neoliberal da economia”. Hoje, transformaram-se em programa de “transferência de renda”.
E Lula mandou bala naquela sua poesia meio chinfrim. “Como a gente pode esperar que uma criança que não toma café da manhã seja inteligente, se ela levanta e vai dormir com a lombriga menor querendo comer a maior? Dê comida para essa criança, para chegar a uma escola”. Ou ainda: “Vamos ver o que vai ser dessa menina, que estava predestinada a ser mais uma menina sem futuro em Campina Grande. Ela vai ter uma profissão e vai poder construir sua vida independente. Essa menina é mais um exemplo daquilo que é a força motora do que me faz fazer política.”
Ai, ai. O assistencialismo é uma droga pesada. Vicia não só aqueles que são atendidos por seus “programas” como também os analistas, que não conseguem pensar. Até outro dia, um programa de “transferência de renda” só seria assim denominado se fosse sustentável - vale dizer, se criasse condições para que as pessoas pudessem andar sobre as próprias pernas e se provocassem mudanças estruturais na sociedade. Vocês sabem: é aquela metáfora-clichê do peixe — dar o dito-cujo ou ensinar a pescar? O Bolsa Família não mudou a sociedade brasileira e, sobretudo, não criou nem mesmo a semente para que, um dia, deixe de ser necessário. Ao contrário: o governo só o expandiu.
Nordeste na mesma
Estudo da Fundação Getúlio Vargas, por exemplo, prova que renda maior não mudou o Nordeste. Isso significa que os efeitos positivos do programa, especialmente no consumo, existem enquanto a doação de recursos continuar. É simples assim. Pode-se até falar, se alguém quiser insistir na idéia, em doação de renda — assim como podemos doar o que não nos faz falta ou nos é supérfluo. Mas transferência de renda??? Lembro os três primeiros parágrafos de reportagem do Estadão a respeito, com base num estudo da Função Getúlio Vargas:
A renda da população do Nordeste, região mais carente do Brasil, cresceu nos últimos anos impulsionada pelo fortalecimento da economia nacional e pelos programas de transferência de recursos como o Bolsa-Família. O dado negativo é que isso não refletiu em melhora na qualidade de vida das pessoas que apenas sobrevivem nesses Estados e nem contribuiu para um desenvolvimento local sustentável.
Serviços essenciais a que todos deveriam ter acesso como saúde de qualidade, educação universal, moradia adequada e segurança apresentaram crescimento bem abaixo da média do aumento de renda.
Os dados são de uma pesquisa inédita feita pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) Projetos, que apresenta amplo diagnóstico das mazelas e conquistas socioeconômicas dos nove Estados nordestinos, Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe, entre os anos de 2001 e 2007.
O levantamento traça um retrato detalhado do atraso da região Nordeste com base em 36 microindicadores oficiais agrupados em oito temas: saneamento básico, qualidade de moradia, educação, segurança pública, renda, emprego, desigualdade e pobreza.
Muito bem. As ações do governo contra as condições estruturais do atraso foram muito modestas, especialmente no Nordeste, que, não obstante, virou palco preferencial do Bolsa Família. O programa é uma espécie de crack da assistência social: tem efeito imediato, vicia rapidamente e transforma os consumidores em zumbis dependentes dos fornecedores de pedra. “Ah, mas Lula é adorado no Nordeste”! Outros benfeitores já o foram antes dele. O fato de eu reconhecer a democracia como valor inegociável não implica que eu tenha de adotar os juízos da maioria. De jeito nenhum!
Digamos que um governo tenha de se preocupar, sim, em matar a fome das Isabelas do Brasil, tomadas em sua individualidade. A pergunta que interessa é como o país vai parar de criar as condições para que a miséria prospere, formando a horda de estado-dependentes do país. E, nesse caso, Lula dá uma escandalosa resposta prática.
Enquanto o discurso da miséria se traduz na miséria do discurso, com sua fanfarra assistencialista, ele dá apoio integral a José Sarney (aquele do Maranhão, ONDE EXISTE UMA ISABELA A CADA CANTO), a Renan Calheiros e, literalmente, ao que há de pior na política brasileira. Mais do que isso: esses progressistas, evidentemente, têm Schopenhauer Lula da Silva nas mãos, atado sabe-se lá a quantas chantagens políticas. O que sabemos é que o PMDB ameaçou Lula com a CPI da Petrobras e com o risco de não se alinhar com a candidatura Dilma. Imaginem, então, quais são os termos da negociação que não conhecemos.
Inteligentes que são, os meus caros leitores já chegaram sozinhos à síntese necessária. É o Brasil dos Sarneys e Renans, aliados de Lula, que dão à luz as condições miseráveis em que nascem as Isabelas, que serão, então, socorridas pelo assistencialismo de Lula, que, por sua vez, dá os braços aos Sarneys e aos Renans… Não! A síntese das sínteses ainda não é essa, mas esta: nesse Brasil, as Isabelas precisam, certamente, de Lula (o pai) e de Dilma (a mãe). Mas os dois precisam desesperadamente das Isabelas.
Sem as Isabelas, a dupla fica sem poesia.
por Reinaldo Azevedo
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