Quase dois séculos atrás, o francês Alexis de Tocqueville, em visita aos EUA, reparou que os americanos tinham algumas características que os diferenciavam de todos os outros povos. Segundo ele, todos os cidadãos seguiam dois valores aparentemente contraditórios. De um lado, cultivavam um individualismo exacerbado e explícito e, de outro, praticavam o comunitarismo em níveis também inéditos.
Como pode uma pessoa ser, ao mesmo tempo, individualista e comunitarista? Na época, anos 30 do século 19, ninguém arriscava uma explicação. O fato é que funcionava. Apesar de manifestamente egoístas, na hora da necessidade coletiva todos contribuíam com o necessário para afastar o problema. Cada um cedia o suficiente e ninguém fazia alarde disso.
Como é possível?
A expressão que engloba tudo isso é "egoísmo esclarecido" e só surgiu há poucos anos. Nos EUA, talvez em função das peculiaridades de sua formação - desde seu passado colonial -, todos os indivíduos aprenderam, desde sempre, a se virar por si próprios e a não contar com o Estado, ou qualquer outra autoridade maior, para ajudá-los nas suas necessidades. Mesmo quando envolvem a comunidade.
Egoísmo esclarecido é o seguinte: todos se assumem explicitamente como individualistas e egoístas e ninguém se envergonha disso; por outro lado, são conscientes e esclarecidos. Quando os problemas são gerais, todos participam e jamais se gabam ou se vangloriam.
Isso é estranho e incompreensível para nós. A cultura latina pauta-se por valores muito diferentes. As pessoas, por aqui, não se assumem como individualistas ou egoístas - ao contrário, são todas altruístas - e, em contrapartida, nada se faz visando exclusivamente a comunidade. Qualquer atitude nesse sentido é sempre muito alardeada e repercutida.
A rigidez da cultura norte-americana vem adquirindo novas nuances. John Rockefeller, já no século 20, foi o primeiro grande empresário a praticar a filantropia. Financiou a educação em todos os aspectos - desde o custo de instalação de salas de aula até pesquisas aplicadas. Sua atitude virou regra: praticamente todos os grandes empresários praticam filantropia. Mas ninguém o faz enquanto sua fortuna ainda está na fase de criação. Não é correto valer-se de uma boa reputação para obter vantagens nos negócios. Também não é costume praticar caridade. Tudo o que se faz é no sentido de ajudar as pessoas a se ajudarem. Essas atitudes são coerentes com o espírito da América. Trata-se de mais uma manifestação da prática do egoísmo esclarecido. Isso não faz sentido dentro da ótica latina. Os valores são outros.
E a fundação de Bill Gates que tem como foco as populações mais pobres do mundo? Trata-se de uma exceção?
Não. A fundação dos Gates se abstém de práticas de cunho paternalista ou assistencialista. Ela investe na criação de novas técnicas - mais em conta e baratas - para proporcionar a todas as nações as condições mínimas para iniciarem o seu processo de desenvolvimento. Seus focos principais são a saúde e a educação.
Nada de esmolas, portanto. Muitos recursos já foram despendidos pelos países ricos com o sentido de ajudar os países pobres. O saldo final é que os povos pobres permanecem na miséria.
Houve pouca honestidade ou transparência por parte das nações desenvolvidas? Ao contrário. O fato é que o dinheiro simplesmente sumiu. E isso ocorreu depois de ter sido transferido para os governos dos povos não-desenvolvidos. Não se dá o peixe, diz o ditado, mas se ensina a pescar.
Voltando aos valores que geram o egoísmo esclarecido, há quem afirme, de fora dos EUA, que os norte-americanos são comportados porque a legislação lá é muito severa. Ora, o Código de Trânsito Brasileiro é duro, o número de policiais é considerado suficiente e nem por isso os motoristas respeitam as regras mais elementares.
Nas autoestradas, por exemplo, nos dias e horários de tráfego intenso, os congestionamentos são agravados porque muitos motoristas optam por "costurar": mudam de faixa constantemente, ultrapassam pela direita e pelo acostamento. No tempo de percurso não levam vantagem alguma. Acabam chegando ao destino junto com aqueles que não adotaram tais práticas. Mas eles ficam satisfeitos. O negócio é levar vantagem em tudo, certo?
As noções éticas de grande parte dos latinos são essas. Furar fila, "costurar" e inúmeras outras atitudes colidem frontalmente com o conceito de egoísmo esclarecido. São evidências, ao contrário, da prática de um egoísmo cego e ignorante. Quando todos querem levar vantagem em tudo, ninguém acaba levando vantagem em nada. É uma conclusão óbvia. Mas, como tudo o que é óbvio, é muito difícil se chegar a ela.
Os latino-americanos, em grande parte, ressentem-se com o sucesso dos norte-americanos. O fato de os EUA - em especial - terem dado certo, enquanto os demais países do continente, com raras exceções, não se desenvolveram, é motivo de ódio. Os EUA desenvolveram-se, entre outras razões, porque seu povo - sua sociedade - vem adotando, desde sempre, os valores que mais facilitam a afluência e o progresso. Não entender isso é tentar, como se diz, encobrir o Sol com a peneira.
Como constataram os autores do livro O Perfeito Idiota Latino-Americano, faz parte da cultura responsabilizar os outros pelos nossos fracassos. Tudo o que aconteceu de errado por aqui foi causado pela "exploração impiedosa" dos EUA ou pelo "sistema colonial ibérico". O livro foi escrito por três homens. Todos originários da América Latina.
É extremamente difícil, para qualquer um, compreender e, sobretudo, assimilar os valores que pautam o egoísmo esclarecido. Mas, ao não fazê-lo, adia-se ainda mais o desenvolvimento. Paciência.
por João Mellão Neto
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