Para começar, acho ridícula essa afirmação segundo a qual regimes ditatoriais não podem ser comparados entre si, afirmação que se revela especialmente hipócrita quando parte de gente que, há dois meses e pouco, usava 60 vezes por minuto a expressão “proporcionalidade” no contexto da escaramuça de Gaza. Afinal, se é imoral comparar o número de vítimas, então o que conta mesmo é quem é o agressor (o Hamas) e quem o agredido (Israel).
Deixando essa história de lado, porém, vale a pena lembrar que mesmo a justiça criminal comum tenta dimensionar comparativamente os crimes e atribuir-lhes penas proporcionais, de modo que, mantido todo o resto igual, quem tenha assassinado duas pessoas merece e recebe pena mais severa do que quem assassinou uma.
Descartada a possibilidade de compararmos imperfeitamente coisas imperfeitas num mundo de imperfeições, resta-nos apenas dividir a humanidade entre anjos (que, por definição, não são humanos) e os demais, todos igualmente falhos, eu tanto quanto o Fábio Konder Comparato, e nós dois tanto quanto o Geisel, Pinochet, Che, Franco, Pol Pot que, aliás, sob a espécie da eternidade e do absoluto, não se diferenciam em nada de São Francisco de Assis ou de outros santos, como os que inventaram a penicilina e as vacinas.
Daí que, sim, ditaduras podem – e devem — ser comparadas entre si, e, se alguém tem os nervos tão à flor da pele e ouvidos tão sensíveis que não agüenta ouvir falar de ditaduras melhores ou piores sem soltar uns gritinhos histéricos e depois desmaiar, talvez possamos lhe fazer uma concessão e, ofendendo em vez disso a última flor do Lácio, discorrer antes sobre ditaduras piores, mais piores e menos piores. Se é possível compararmos ditaduras a democracias e, inclusive, democracias entre si, por que não cotejarmos ditaduras? Todos vamos morrer, mas, ainda assim, é preferível que isso ocorra aos 90, não aos 20 anos de idade. Da mesma forma, faz muita diferença para cada indivíduo saber quais as chances que ele ou ela terá de ser morto, preso, torturado num regime: 0,01% não é igual a 10%.
Mas, até aqui, tenho visto ditaduras sendo comparadas de uma maneira quase exclusivamente quantitativa: qual delas matou mais. É um padrão importante, mas nem de longe o único.
O fato é que, qualitativamente, os regimes comunistas foram muitíssimo piores do que os regimes militares latino-americanos. Em última instância, caso alguém não quisesse viver no Brasil do AI-5, nada o/a impedia de fazer as malas e se mudar para o Uruguai ou para a França, para os EUA ou Cuba, para a URSS ou a China. Escolhas semelhantes estavam à disposição de quem vivesse no Chile ou na Argentina etc. Mas nada disso se aplicava à própria URSS, aos países do Pacto de Varsóvia (Polônia, Romênia, Hungria, Alemanha Oriental etc.), à China e assim por diante. E segue não se aplicando seja a Cuba, seja à Coréia do Norte, os dois maiores campos de concentração e/ou de trabalhos forçados do planeta.
Que uma pessoa fosse proibida de deixar a Alemanha Oriental (milhares morreram tentando saltar um muro construído para encarcerar a população) e continue, ainda hoje, proibida de abandonar o paraíso tropical de Fidel Castro, isso é mais do que um detalhe circunstancial. É, de fato, o elemento central, definidor desses regimes. Os habitantes desses países não são, de modo algum, cidadãos submetidos a uma ou outra restrição arbitrária de suas liberdades básicas. O que lhes é cassado é o direito humano fundamental de ir e vir, de escolher onde viver. Repito: eles não são cidadãos de verdade, eles são propriedade do Estado, e este, por seu turno, é propriedade privada de uma malta de ladrões, assassinos e pervertidos.
Quem diz que o comunismo (ou socialismo) aboliu a propriedade privada mente: ele transformou, isto sim, o grosso da população em propriedade privada, ou seja, em servos de gleba, em escravos. Os regimes, que se proclamam pós-capitalistas, são, a rigor, pré-capitalistas, feudais mesmo, pois re-instituíram a escravidão.
No capitalismo, como se diz, tudo que o trabalhador tem para vender é sua força de trabalho. Bom, no comunismo ele não dispõe livremente nem sequer disso, porque ele, sua família e a força de trabalho de todos pertencem aos mesmos latifundiários (algumas poucas famílias) que detêm igualmente a propriedade da terra e demais meios de produção. Diga-se de passagem, aliás, que os mais de 10 milhões de escravos cubanos (para nem falar dos norte-coreanos) têm menos direitos do que os servos na Europa medieval ou mesmo os escravos do século 19 no Brasil ou nos EUA. A diferença é que, na esquerda contemporânea, não há ninguém tentando abolir essa nova escravidão. (Mas a anterior tampouco foi abolida pela esquerda.)
Muitos falam das supostas conquistas sociais cubanas que, para todos os efeitos, justificariam o resto (como se um escravo no Alabama não tivesse acesso a mais calorias do que um nômade do Kalahari). As “conquistas” mais citadas são a saúde (e o grosso do que se diz a seu respeito é mentira pura e simples) e a educação (que se resume em alfabetizar a criadagem para que ela possa seguir direito as instruções dos amos e ser doutrinada por escrito pelo resto da vida). Se levarmos, no entanto, em consideração que esses milhões de escravos são propriedade privada da família Castro, de seus agregados e capitães-de-mato, constataremos que eles estão somente cumprindo suas obrigações mínimas — alimentar (muito mal) e cuidar (pior ainda) daquilo que, afinal, é seu grande capital. Se um pecuarista, um criador de gado de corte cuida direito de seu rebanho, alimenta-o, vacina-o etc., ele não o está fazendo por altruísmo, generosidade ou porque ame os bovinos. Ele está apenas tentando produzir carne que valha mais no mercado.
Podemos, então, dizer que Cuba é uma ilha caribenha dividida em duas prisões. Uma delas, Guantánamo, abriga algumas centenas de terroristas fanáticos e desvairadamente homicidas capturados nos campos de batalha onde se enfrentam a civilização e a barbárie. Desses facínoras, que recebem alimentação farta e adequada a suas exigências religiosas, cuidados médicos de primeira e cujos exemplares do Corão (cortesia do contribuinte norte-americano) são respeitosamente tratados pelos guardas, nem um sequer foi ainda executado, muitos já foram soltos, e é provável que os demais logo o sejam também.
A outra prisão, que ocupa a quase totalidade da ilha, encarcera mais de dez milhões de inocentes subnutridos, incessantemente doutrinados, proibidos de saber o que ocorre no resto do mundo e que não têm escolha exceto a de viverem num cortiço que não é sequer renovado ou reparado há meio século. Qualquer tentativa de fuga é punível com a morte. De resto, enquanto aos prisioneiros de Guantánamo se garante o direito elementar de reclamarem, queixarem-se e exigirem advogados, os cubanos propriamente ditos são obrigados a louvar e agradecer os seus grilhões. Nisso, nem o mais abjeto de nossos coronéis escravagistas, donos de gado e de gente, teria pensado.
por Nelson Ascher
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