sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A Corrupção dos Homens e a Corrupção da Sociedade

César separou-se de Pompéia, sua mulher, porque ela foi publicamente considerada culpada de uma ofensa religiosa — pesquisem —, embora ele soubesse, pessoalmente, que ela era inocente. Líder máximo de Roma (ainda era uma República; ele nunca foi imperador), a questão de estado se sobrepôs à pessoal. E então disparou a máxima, sempre muito citada: “À mulher de César não basta ser honesta; é preciso também parecer honesta”.

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Alguém que age pensando nos interesses do Estado pode, o que deve ser terrível, ser compelido a tomar certas decisões — contra aliados e amigos — que, mesmo ferindo seu senso pessoal de justiça, concorrem para o equilíbrio da República. O desejável é que o governante não seja levado a fazer tal escolha. Compelido a tanto, os honestos farão como César. Notem que, nesse caso, estamos diante de uma soma de atributos: o “parecer honesto” não contradiz o “ser honesto”.

Uma mentalidade, digamos, essencialista — coisa muito em voga em nosso tempo; vocês sabem, a turma do “self”… — logo indagaria: “Que importância tem o ‘parecer’? É o ’ser’ que importa”. Na vida pública, tal contradição é descabida. A verdade é tão importante quanto a aparência, daí a necessidade das regras do decoro, que buscam uniformizar a atuação dos homens públicos, lembrando aos cidadãos que os governantes zelam pela res publica. Notável desdita para o homem de estado, nesse caso, obrigado a ser injusto na esfera privada para garantir a justiça na esfera pública. Um governante honesto, assim, é sempre mais angustiado do que feliz.

A distorção populista
Pode-se submeter a máxima cesariana a uma distorção muito típica dos populistas — e de demagogos de um modo geral. Se pensassem a frase de César como um norte moral, encontrariam nela um excesso de rigor. A esquerda brasileira, por exemplo, e seus esbirros na imprensa diriam que há ali um excesso de moralismo; que a política, como arte dos cínicos, não pode ser, assim, tão justa; que a lambança é mesmo parte do jogo.

Nesse caso, o governante ainda conserva o senso do “decoro”, das necessidades da res publica, mas tende a considerar que ele é só o tributo que paga a virtude para que o vício possa ser exercido às escuras. A mensagem que esse governante passa aos seus poderia ser resumida assim: “A mulher de César até pode ser desonesta, mas não pode parecer desonesta”.

Esse norte instrui os mais diversos comportamentos. Governantes assim costumam ter os seus “operadores sujos”, que fazem “o necessário” (seja lá o que for). A regra de ouro é uma só: o público não pode ficar sabendo. Se a informação “vazar”, como se diz no jargão jornalístico, será preciso sacrificar o “operador”. Assim se conduziu, por exemplo, o primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva. A cúpula do PT que chegou ao poder com ele caiu — ao menos formalmente.

Pegue-se um exemplo: José Dirceu serviu Lula ao, segundo a Procuradoria Geral da República, chefiar a quadrilha do mensalão. O presidente e seus aliados estavam pouco se lixando se ele era honesto. Essa exigência não estava dada. Mas ele precisava parecer honesto.

A bandalheira
Pode acontecer, no entanto, de o governante viver naquele que é, para si mesmo, o melhor dos mundos — e o pior para a res publica. Nesse caso, os homens de estado não precisam nem ser nem parecer honestos. A corrupção do próprio caráter faz com que transformem o exercício do poder em fonte de satisfação pessoal e do grupo. Para que possam viver o poder como um festim, como celebração orgíaca da desordem, aí contam com a corrupção moral de setores importantes da própria sociedade.

Esse padrão define o segundo mandato de Lula. Otacílio Cartaxo não precisa seguir as regras estritas da Receita Federal, por exemplo. E não precisa nem mesmo fingir que as segue. Luiz Inácio Lula da Silva ignora as leis, faz chacota e vê exaltada a sua formidável habilidade política. Petistas não se indignam com a lambança de seus pares — nem mesmo fingem que estão indignados. Setores importantes da imprensa acham irrelevantes os agravos à Constituição — nem mais executam a mímica da defesa do estado de direito.

As sociedades que exigem ao menos o decoro dos seus governantes deixam claro que não aceitam ser cúmplices de crimes. As que passam a tomar a falta de decoro como evidência de esperteza e de habilidade política fazem um pacto com o desastre. Pode até tardar, mas vem.

por Reinaldo Azevedo

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