quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

As Vítimas Esquecidas

No dia 19 de março de 1968, o estudante Orlando Lovecchio Filho estava passando em frente à biblioteca do consulado dos EUA em São Paulo, na Avenida Paulista, quando percebeu um pacote estranho. Ao aproximar-se do objeto, foi atingido por uma forte explosão. Levado ao hospital, teve a perna esquerda, dilacerada pelo choque e pelos fragmentos, amputada. Era o fim do sonho de Lovecchio, 22 anos, de tornar-se piloto de avião.


O pacote que mutilou Lovecchio era uma bomba. Quem a colocou foram militantes de uma organização clandestina de esquerda, a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), que pretendia assim "protestar" contra o "imperialismo ianque". Um dos que colocaram a bomba, Diógenes Carvalho de Oliveira, o "Diógenes do PT", foi recompensado com uma polpuda indenização do governo federal, como ex-preso político (há alguns anos, ele foi apanhado em flagrante tentando proteger bicheiros no Rio Grande do Sul, onde era secretário do governo). Quanto a Lovecchio, até hoje tem que conviver com as seqüelas do atentado que o incapacitou para o resto da vida, e é obrigado a sobreviver com uma magra pensão de R$ 500 mensais. Para cúmulo da desgraça, ele chegou a ser interrogado como suspeito da explosão que o vitimou, há mais de quarenta anos: somente em 1992, um dos participantes, o artista plástico Sergio Ferro, admitiu a autoria do atentado.


A história de Orlando Lovecchio é o tema do documentário "Reparação". Filmado em alta definição, sem nenhum apoio oficial (o que é raro, e, dado o tema, não é de se estranhar), o filme parte do caso de Lovecchio para fazer algo jamais visto, até agora, na cinematografia brasileira, em especial na produção cinematográfica sobre os "anos de chumbo" do regime militar: um debate sobre a violência e o terrorismo das organizações armadas de esquerda que, nos anos 60 e 70, praticaram dezenas de atentados, ataques à bomba e assassinatos em nome da "resistência contra a ditadura".


Com depoimentos do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do historiador Marco Antonio Villa e do geógrafo e cientista político Demétrio Magnoli, além do próprio Lovecchio, o documentário vai direto na jugular, ajudando a demolir velhos mitos e falácias que persistem até hoje sobre o período. Em primeiro lugar, os "guerrilheiros" que pegaram em armas contra o regime de 64 eram, sim, terroristas, viam na violência e no terrorismo o caminho para uma revolução socialista no Brasil, e não somente para "resistir à ditadura". Mais: não lutavam pela democracia, como se tornou usual afirmar, mas por uma forma de ditadura revolucionária, inspirada em regimes totalitários como o de Cuba e o da Coréia da Norte (dos quais, aliás, recebiam apoio material e treinamento). Antes mesmo de 1964, como mostram a historiadora Denise Rollemberg e o jornalista Elio Gaspari, já havia luta armada no Brasil - o que prova que a esquerda era, ela também, golpista, como afirma Marco Antonio Villa. Enfim, uma visão completamente diferente e oposta à romântica (e inteiramente falsa) versão oficial da esquerda como defensora da democracia e dos guerrilheiros como lutadores da liberdade.


Mas o mais importante no filme está na maneira como resgata um dos aspectos menos conhecidos dos "anos de chumbo", coberto até hoje com uma cortina de silêncio. Diga as palavras "ditadura" e "vítimas" e o que lhe virá à cabeça? A associação automática será, provavelmente, com heróicos guerrilheiros, em sua maioria muito jovens (o que lhes dá um ar de pureza angelical), imolados em tiroteios ou assassinados sob tortura pelos "agentes da repressão". No máximo, se alguém lembrar que houve mortos e feridos também do outro lado, você pinçará o nome deste ou daquele militar ou empresário "justiçado" por um comando guerrilheiro por participar ou dar apoio à repressão. Nunca, jamais, as pessoas inocentes que foram vitimas das balas ou bombas da esquerda radical.


Pois é esse tabu que o documentário vem quebrar. Ao centralizar a atenção no caso de Orlando Lovecchio Filho, o filme crava o último prego no caixão da mitologia esquerdista sobre o período e mostra que, muito mais do que os "agentes da repressão", as maiores vítimas da luta armada de esquerda foram cidadãos comuns, simples transeuntes alheios à política, que tiveram a má sorte de estar no lugar errado, na hora errada. Pessoas como Lovecchio, que casualmente se encontrava no consulado norte-americano quando teve a perna arrancada por uma bomba assassina, ou que estavam em uma fila de banco quando se viram no meio do fogo cruzado entre agentes de segurança e os "guerrilheiros" que praticavam uma "expropriação revolucionária".


Para essas pessoas, vítimas inocentes de uma guerra suja, não houve até hoje qualquer homenagem. Nenhuma delas virou estátua, como a que se pretende erguer no sertão da Bahia para Carlos Lamarca, ou de rua, como Carlos Mariguella, cujo nome se pretende dar a uma praça no Rio de Janeiro, e que Frei Betto quer que vire nome do aeroporto de Salvador. Anônimas, sem rosto e, principalmente, sem o glamour da militância revolucionária, as vítimas da violência terrorista de esquerda não mereceram ainda sequer o reconhecimento oficial, ou um singelo pedido de desculpas. Muito menos indenizações milionárias, como as que a secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, não por acaso comandada por um ex-guerrilheiro da Ação Libertadora Nacional (ALN), Paulo Vanucchi, distribui fartamente para todos aqueles que aleguem ter passado algumas horas no DOPS. Inútil também procurar o nome de alguma dessas pessoas em algum livro sobre os mortos e desaparecidos políticos no Brasil desde 1964.


O que explica tamanha duplicidade de discurso, tão clara adoção de pesos e medidas diferentes para os mortos e feridos de cada lado, e até para os que não estavam em lado algum, durante o passado brasileiro recente? A resposta é simples: para a esquerda, hoje no poder no Brasil, os mortos só valem se fizerem parte de sua grei. Isso significa que um "guerrilheiro" morto em combate contra policiais vale muito mais do que suas vítimas, inocentes ou não. Um militar, por exemplo, mesmo um que não tivesse qualquer relação com o aparato repressivo, é, nessa visão, um alvo perfeitamente legítimo, ainda que "simbólico" - os "guerrilheiros" chegaram a metralhar um marinheiro inglês no Rio de Janeiro, em 1972, em "protesto" pela repressão britânica na Irlanda do Norte... Quanto aos civis, os pacatos cidadãos atingidos por bombas ou projéteis, esses seriam, de acordo com a esquerda, "danos colaterais" da luta pela revolução e pelo socialismo. Em outras palavras: apenas os que tombaram na luta merecem reverência e reparação estatal, inclusive monetária: todos os demais, ou eram malditos inimigos que mereciam morrer como cães ou pereceram porque estavam do lado errado. De qualquer maneira, de acordo com essa visão, somente os cadáveres de esquerda merecem homenagem: o fato de terem sido caçados pela repressão e muitos terem sofrido torturas funciona como um álibi para o terrorismo.


O documentário surge no momento certo, quando membros do governo Lula - ele mesmo, beneficiado como ex-preso político -, pretendem revisar a Lei de Anistia, a fim de punir somente um lado do conflito ideológico dos anos 60/70 - o lado dos militares, claro. Desnecessário lembrar, mas nenhum nome de vítima da luta armada de esquerda foi lembrado pelos que querem rever a Lei, como o ministro da Justiça, Tarso Genro, que no entanto se mostra muito preocupado com os "direitos humanos" do terrorista Cesare Battisti, condenado à prisão perpétua na Itália por quatro assassinatos. Nomes como o de Orlando Lovecchio Filho, ou do jornalista Edson Régis e do almirante Nelson Fernandes, mortos em atentado à bomba no aeroporto dos Guararapes, em Recife (PE), em 1966 - dois anos antes do AI-5 -, entre tantos outros, não são mencionados. Nem mesmo de militantes da própria esquerda, assassinados pelos próprios companheiros de organização, em pleno auge da repressão política, como Márcio Leite de Toledo, fuzilado no centro de São Paulo em 1971 por discordar dos rumos da organização a que pertencia, a ALN - o que mostra que, mesmo cercados e perseguidos pela polícia, os terroristas brasileiros ainda encontravam tempo para matar-se uns aos outros.


Todos esses fatos são conhecidos. Basta pesquisar, e o interessado irá encontrar dezenas de casos semelhantes, alguns realmente estapafúrdios - segundo relato do jornalista Hugo Studart, um guerrilheiro do PC do B no Araguaia foi "justiçado" por seus companheiros pelo "crime" de ter um caso amoroso com uma militante casada... No entanto, até agora, jamais tinham vindo à luz do grande público, nem muito menos haviam ganho as telas do cinema, pelo menos como fato principal. Até agora.


Como mostra o documentário "Reparação", os dias da hegemonia esquerdista na cinematografia brasileira sobre o período militar estão contados. As vítimas desconhecidas dos "anos de chumbo", finalmente, estão sendo resgatadas do limbo a que foram relegadas por décadas de propaganda ideológica marxista. Falta ainda receberem o mesmo tratamento dos heróis da esquerda. Se depender de gente como Paulo Vanucchi e Tarso Genro, porém, isso não vai acontecer tão cedo.


por Gustavo Bezerra, do Blog do Contra

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