segunda-feira, 30 de novembro de 2009

De Volta a Honduras

O deputado Raul Jungmann (PPS-PE) é membro da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e um dos mais de 300 observadores estrangeiros que acompanharam a eleição em Honduras neste domingo - o único brasileiro. Abaixo, ele conta o que viu e ouviu em Honduras quando esteve lá em setembro e agora. Os grifos são meus.



Estive em Honduras no fim de setembro chefiando uma missão parlamentar da Câmara dos Deputados. Naquela oportunidade, encontrei-me com toda a cúpula política do país - Corte Superior de Justiça, presidente, mesa diretora e líderes da Assembléia Nacional, Comissão Nacional de Direitos Humanos, presidente da República e presidente deposto, além de diplomatas, sociedade civil e jornalistas. Agora, estou de volta à capital hondurenha, Tegucigalpa, como observador internacional do processo eleitoral, o único do Brasil.

Acho que aprendi algo sobre o que se passou e se passa aqui e me chama atenção a repetição, como um mantra, de erros grosseiros, factuais ou de interpretação, sobre a crise em que foi mergulhado esse país. Resolvi então selecionar os dez mais comuns e contestá-los no intuito de desfazer equívocos e informar corretamente.

01. EM HONDURAS OCORREU UM GOLPE
Se, por um golpe, tomamos algo que se dá contra a Constituição de um país ou à margem dela, certamente não. A deposição do Presidente Zelaya e a posse do presidente Roberto Micheletti se dão de acordo com a Carta hondurenha. Todas as instâncias legais foram observadas, e todas as instituições - Corte Suprema, Procuradoria Geral, Advocacia da União e Congresso - se manifestaram como manda o rito constitucional. E, em todas elas, o sr. Zelaya foi condenado jurídica e politicamente.

02. MICHELETTI É UM PRESIDENTE DE FACTO E GOLPISTA
O Sr. Micheletti é o presidente constitucional de Honduras e não de fato ou interino. Ele chegou à Presidência por comando claro da Constituição, dado que era o sucessor legal e que o vice se afastara para concorrer às eleições. Ele deverá passar o cargo ao seu sucessor no prazo previsto, 27 de janeiro de 2010. Golpista nenhum torna-se presidente e deixa de sê-lo de acordo com o que manda a Constituição.

03. O PRESIDENTE ZELAYA NÃO TEVE DIREITO DE DEFESA
Sigamos a cronologia dos fatos. Em fevereiro de 2009, o Sr. Zelaya torna pública a sua intenção de realizar um plebiscito, o que feria a letra da Constituição. Em abril, a Fiscalia de la Republica (Procuradoria Geral) lhe manda uma primeira carta alertando-o para a flagrante inconstitucionalidade de tal ato. Zelaya desdenha. Ainda em abril, uma segunda carta pública lhe é enviada pela Fiscalia com o mesmo resultado, pois o presidente, também publicamente, reitera suas intenções. Então, a Fiscalia oficia, em maio, para que se pronuncie o Advogado Geral do Estado, e este o faz reforçando a tese da inconstitucionalidade. Nesse momento, a Fiscalia requer à Justiça de primeira instância que instaure processo, do qual resulta a condenação de Zelaya, que recorre ao Tribunal de Apelação, que igualmente o condena, com novo recurso à Corte Superior de Justiça - com o mesmo resultado dos anteriores. É então que, no dia 23 de março, o presidente Zelaya publica um decreto convocando uma Constituinte, o que colide frontalmente com um outro artigo da Carta.

Entra em cena o Congresso Nacional, que usando de suas prerrogativas, julga a conduta do presidente e, por 123 votos a 5, inclusa a maioria do seu partido, decide afastar o presidente Zelaya. Duplamente julgado e condenado, tendo tido amplo direito de defesa, ele é afastado, tem os seus direitos políticos cassados e sua prisão decretada pelo presidente da Corte Superior de Justiça no dia 28 de junho. Onde, portanto a ausência de contraditório e o amplo direito de defesa?

04. ZELAYA É UM HOMEM DE ESQUERDA E POPULAR
Nada, na biografia e trajetória do presidente deposto, autoriza essa constatação. Filho de um rico fazendeiro (envolvido em uma chacina de camponeses), eleito pelo Partido Liberal, de direita, privatista e antiestatista, o Sr. Zelaya se elegeu com um programa pró-mercado e de reformas. No poder, cai nas graças de Hugo Chávez, ingressa na ALBA, a Alternativa Bolivariana Para as Américas , assumindo posturas e projetos populistas e assistencialistas. Por essa “conversão”(?!), torna-se um ídolo para uma certa esquerda de pouco tino e senso histórico.

05. ZELAYA NÃO VOLTOU AO PODER POR CONTA DA DITADURA GOLPISTA
Nada mais falso. Em primeiro lugar, todas as instituições hondurenhas estão abertas e funcionando normalmente, o que, convenhamos, é esquisitíssimo em se tratando de um golpe de Estado. Em segundo, contando com o esmagador apoio de toda a comunidade internacional, da OEA e a ONU, e se dizendo popular e com o apoio dos hondurenhos, por que “Mel” não retorna ao poder? Por dois motivos: a totalidade das instituições de Honduras está definitivamente contra ele, e a maioria do seu povo, também. Tivesse esse último a seu favor, manifestações de massa - inexistentes - e uma greve geral, mais o apoio externo, teriam derrubado o atual governo.

06. O RESULTADO DAS ELEIÇÕES NÃO SERÁ ACEITO DEVIDO À DITADURA
As atuais eleições foram convocadas e datadas antes da atual crise. Todos os partidos puderam apresentar candidatos e debater seus programas nas praças, rádios e TVs. Os hondurenhos podem votar livremente, e o Tribunal Superior Eleitoral, órgão independente, supervisiona e fiscaliza o pleito.

Apenas 0.5% dos mais de 15 mil candidatos inscritos atenderam ao apelo do Sr. Zelaya para boicotarem as eleições, e o principal partido de esquerda, a UD, está na disputa, rachando e minguando a base de apoio do ex-presidente deposto. Se o povo hondurenho acorrer às urnas e se o pleito for limpo, segundo os mais de 300 observadores internacionais, as eleições e seu resultado serão legítimos.

07. O RESULTADO DAS ELEIÇÕES NÃO SERÁ RECONHECIDO NO EXTERIOR
Será por uns e por outros. Do lado do reconhecimento, estarão os EUA, Colômbia, Israel, Peru, Panamá, Canadá, Alemanha e Itália até o momento. Contra, teremos o Brasil, a Argentina, Venezuela, Equador, Uruguai, Chile, Paraguai, Bolívia, Suriname e, certamente, os demais países da comunidade européia. Porém, com o passar do tempo, caso as eleições sejam limpas, o primeiro grupo irá paulatinamente crescer, e o segundo, minguar. Lembrando que aqui o voto não é obrigatório e a abstenção é costumeiramente altíssima, atingindo mais de 50%.

08. O GOLPE EM HONDURAS AMEAÇA A DEMOCRACIA NA AMÉRICA DO SUL
Como espero haver demonstrado, não houve golpe em Honduras. Houve, sim, e isso não pode ser esquecido ou tolerado, uma abominável agressão ao Sr. Zelaya. Quando ele já não era mais presidente, foi retirado de sua casa de madrugada e enviado para fora do país. Os responsáveis por isso têm de ser exemplarmente punidos, na forma da lei, para que tal crime jamais se repita, em Honduras ou qualquer lugar.

Agora, o que ameaça a cláusula democrática no subcontinente é o meio compromisso com a democracia. Se o Sr. Zelaya foi apeado do poder segundo as regras constitucionais do país, e foi sucedido em linha com as mesmas regras pelo Sr. Micheletti, chamar a isso de golpe de Estado é atentar contra a democracia. E isso vale, em especial, para uma certa esquerda, para a qual, sendo o atual governo de direita, ele é inaceitável, como se a esta não fosse permitido chegar ao poder, no que incorre em duplo erro.

Em primeiro lugar, porque foi a Constituição, que colocou a “direita” na presidência. Em segundo, é o Sr. Manuel Zelaya o golpista de fato, ao atentar contra a Carta Constitucional e as instituições hondurenhas. Portanto, é ele quem ameaça a democracia na America do Sul, e não o contrário.

09. LULA ERROU AO RECEBER ZELAYA NA EMBAIXADA BRASILEIRA
Não, ele agiu certo. É tradição humanitária do Brasil receber em nossas embaixadas quem nos procura em situação de risco. O erro foi dar status de “abrigado” ao Sr. Zelaya quando o correto, jurídica e diplomaticamente, seria lhe conceder asilo. Ao lhe dar abrigo e não asilo, o ex-presidente pôde legalmente usar a embaixada brasileira como palanque político, interferindo na política hondurenha, o que constitui gravíssimo erro e desrespeito à soberania hondurenha.
Imaginem se, ao ser deposto, o presidente Collor se abrigasse numa embaixada de um país qualquer e de lá convocasse uma insurreição contra o governo de Itamar Franco. Como nos sentiríamos?

10. A POSIÇÃO DO BRASIL FOI CORRETA DIANTE DA CRISE
Antes de mais nada, a América Central, e Honduras em particular, jamais foi importante ou área de influência do Brasil, donde resulta em erro o calibre e engajamento da resposta. Em duzentos anos de relações diplomáticas, um único presidente nosso esteve lá, Luis Inácio Lula da Silva. Nossas relações comerciais são irrisórias, e a região tem com os EUA 70% da sua pauta comercial. Sendo que Honduras fecha as suas contas nacionais com remessas que lhe são enviadas dos Estados Unidos pelos que para lá imigraram.

Ao ver golpe aonde houve desrespeito aos direitos humanos e, em seguida, ao defender o retorno do Sr. Zelaya ao poder, erramos de novo. Por fim, ao dar a este a condição de abrigado e não de asilado, permitimos o uso da nossa embaixada como palanque. Com essa seqüencia de equívocos, perdemos a condição de mediadores, deixando de ser uma fonte de soluções para nos tornarmos parte do problema.

Caso as eleições de hoje sejam limpas e o Brasil teime em não reconhecê-las, erraremos de novo e em definitivo.

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