sexta-feira, 19 de setembro de 2008

A Burguesia do Estado

O Brasil é particularmente sujeito a ilusões irresistíveis. Citemos algumas.

A primeira é a que se pode melhorar o padrão de vida pela decretação do salário mínimo. A questão é que, se ele for realista, o mercado o praticará independentemente de lei. Se sobreestimado, será anulado pela inflação ou pelo desemprego, ou podado na economia informal.

A segunda é atribuir importância "estratégica" ao monopólio estatal do petróleo. Mas como nenhum dos países ricos (e militarmente fortes) do G7 tem monopólios estatais, segue-se que estes são desnecessários quer para a riqueza quer para a segurança. Trata-se de cacoete de país subdesenvolvido.
A terceira é que o Brasil tem empresas "públicas" que visam a maximizar o bem-estar da nação, sem o egoísmo das empresas privadas. A verdade é que a empresa pública brasileira é um mito. Ela só seria "pública" se o povo tivesse participação significativa em sua gestão ou se trouxesse ao Tesouro Nacional apetitosos dividendos para financiar o social. Nada disso acontece. As estatais são reservas de caça de políticos e tecnocratas, que formam uma nova classe: a "burguesia do Estado".

No Brasil, mesmo as chamadas "jóias da coroa" já foram de há muito privatizadas pelos seus funcionários, que se apropriaram do grosso dos recursos, deixando apenas migalhas para o Tesouro. É o que transparece do quadro abaixo:

Como se pode verificar, as contribuições da Petrossauro para o seu fundo de pensões, na média do quadriênio 1995/1998, foram 4,7% maiores que os dividendos pagos ao Tesouro.

Este pobretão, que representa 163 milhões de brasileiros, auferiu a "excitante" rentabilidade média de 1,4% ao ano! É como se a viúva fosse explorada por um gigolô!

O Banco do Brasil é ainda pior. As contribuições para os funcionários são 6,95 vezes o rendimento do Tesouro, e a rentabilidade média do capital empatado foi de 1,03% ao ano.

No caso da Eletrossauro, a situação é "aparentemente" menos chocante. A rentabilidade média anual para o Tesouro foi de 4,67%, e as contribuições para os fundos de pensão não alcançaram a quarta parte dos dividendos do erário. Aparentemente, porque existe um enorme passivo previdenciário não provisionado correntemente.

O déficit atuarial dos fundos de pensão (excesso de benefício sobre receitas realizáveis) é estimado em R$ 1,2 bilhão, no caso de Furnas; R$ 300 milhões na Chesf e R$ 200 milhões na Eletronorte.

Essa responsabilidade atuarial terá que ser de alguma forma absorvida no caso da privatização, podendo traduzir-se numa substancial redução do preço de venda. Note-se que a Petrossauro já reconheceu uma dívida de R$ 5.991.700 para com a Petros, a ser provisionada em parcelas anuais.

Esses "passivos previdenciários" são um dos grandes obstáculos à privatização dessas empresas e explicam também sua feroz resistência ao programa de desestatização e sua engenhosidade na exploração da indústria das "liminares judiciais".

Nos países da antiga órbita soviética, a burocracia partidária – a "nomenklatura" - formou uma "nova classe" causticamente descrita pelo dissidente iugoslavo Milovan Djilas, a qual recebia recompensas não à base da eficiência produtiva e sim da fidelidade aos dogmas marxistas.

Nos países da América Latina, onde as burocracias estatais cresceram desmesuradamente, na época em que se acreditava no planejamento central e no dirigismo desenvolvimentista, surgiu também uma nova classe, a dos "burgueses do Estado". Os contribuintes, cujos impostos financiam as estatais, passaram a ser os novos "proletários".

A liderança dessa burguesia é exercida no Brasil pela CUT, que é cada vez menos um sindicato de operários e cada vez mais um sindicato de funcionários. Essa corporação sindical, cujo braço político é o PT, tem sido inquestionavelmente eficiente na defesa desses burgueses, aduzindo
imaginosamente toda a sorte de argumentos contra a desestatização: soberania ou segurança nacional, missão social, patriotismo, filantropia, desenvolvimentismo... "et caterva".

O único argumento ponderável é o receio de substituição de monopólios públicos por monopólios privados. Claramente, o ideal é um regime competitivo, como o que se está estabelecendo nas telecomunicações e no setor de geração de energia elétrica.

Mas é importante notar que o monopólio privado é muito menos nocivo que o monopólio público, simplesmente porque é muito mais "contestável": as concessões podem ser fiscalizadas ou canceladas pelas autoridades regulatórias, as empresas podem ser processadas por perdas e danos e correm o risco da falência, e a reclamação popular é muito mais eficaz porque as empresas não podem se abrigar sob o manto da intocabilidade patriótica, como o fazia a Petrossauro.

A crua realidade é que não faz o menor sentido para o governo continuar cativo dessa burguesia. Há um enorme déficit fiscal, que tem de ser financiado pela rolagem da dívida a juros altos, que oprimem o setor privado e os consumidores.

A reforma da estrutura fiscal, ainda em gestação, deveria conter o "fluxo" da dívida, mas precisa ser completada pela privatização, cuja receita deveria ser aplicada na redução do "estoque" da dívida pública. Que o alívio pode ser expressivo, prova-o uma aritmética grosseira.

Mesmo se as ações de controle do Tesouro na Petrossauro fossem vendidas pelo valor contábil, sem ágio, aplicando a receita no cancelamento de dívidas, as economias para o Tesouro (ao custo atual de rolagem de 23,5% ao ano) seriam de 17 vezes os dividendos médios recebidos no último quadriênio. No caso do Banco do Brasil seriam de 23 vezes, e no da Eletrossauro, 5,03 vezes (exclusive o passivo previdenciário).

Manter estatais com baixíssima rentabilidade, enquanto o setor privado é sangrado por impostos e juros altos, não é um comportamento racional. É uma aberração freudiana, vizinha do masoquismo. E explica por que nossos estatólatras desenvolvimentistas não entendem nada de desenvolvimento.

por Roberto Campos, 82, economista e diplomata

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