quinta-feira, 11 de setembro de 2008

Bolívia - Brasil

Se restava alguma dúvida sobre a origem da crise na Bolívia e a (in)capacidade de Evo Morales de responder ao desafio de fortalecer a democracia no país, a resposta veio no começo da noite de ontem, quando ele decidiu expulsar o embaixador dos Estados Unidos no país, Philip Goldberg. Em discurso do Palácio do Governo, disse que Goldberg “conspira contra a democracia e busca a divisão da Bolívia". Segue a instrução de seu grande mentor espiritual, Hugo Chávez.

O ato, de pura propaganda ideológica, busca caracterizar os opositores como aliados dos Estados Unidos, que, sabe-se lá por quê, estariam interessados em derrubar o governo. Vai ver teme a influência da Bolívia no continente... E o fato é que as dificuldades que Evo Morales enfrenta foram criadas por Evo Morales. Seguiu a cartilha de seu aliado venezuelano: usar as regras do jogo para solapá-lo e entender a democracia apenas como a imposição da vontade da maioria. Deu no que se vê.

A forma escolhida pelos oposicionistas para enfrentar o governo é aceitável ou tolerável num estado democrático? É claro que não! Mas então surge a pergunta capital: e cadê o estado democrático para, fazendo o uso legítimo da força, restaurar a ordem? Não existe porque o governo não se ocupou de fortalecer as instituições. Ao contrário: Evo as debilita — perseguindo, de novo, os passos do bandoleiro de Caracas. O presidente boliviano diz que não reprimiu até agora os opositores porque não quer um banho de sangue. É mesmo? Creio que não o fez porque não pode. Uma ordem para baixar o porrete talvez o expusesse à indisciplina militar — poderia não resultar exatamente num golpe; mas a baderna aumentaria.

Governos que brincam com a institucionalidade entram invariavelmente numa espiral negativa, da qual é muito difícil sair. Como é que Evo restaura a ordem agora? A outra má idéia que ele teve foi mobilizar os camponeses seus aliados e insuflar o confronto contra aqueles que chama “os fascistas”. Resolve? Não! Alimenta o ódio. Os que partiram para o confronto aberto contra o governo transgrediram, evidentemente, as leis. Serão punidos? Mas por qual estado exatamente? Se Evo o fizer, alcança a paz social? Não. Se não o fizer, evidencia a própria fragilidade? Sim.

Brasil
Cumpre falar um pouco do Brasil, que tem vivido, desde a redemocratização, um ciclo institucionalmente virtuoso. Justiça se faça a todos os presidentes de Sarney a FHC — e incluo até Fernando Collor na lista —, não se viram ações do governo contra os fundamentos do estado democrático e de direito. E por isso o país tem enfrentando as suas enormes carências sem ameaças de rupturas institucionais. Nos oito de Fernando Henrique Cardoso, em particular, consolidaram-se as bases da tal democracia participativa, mas sempre contidas pela institucionalidade.

Lula merece um parágrafo. Por que o deixei fora do período compreendido acima? Porque ele veio — e se quer até hoje — como o contestador desse passado politicamente virtuoso. Nunca lhe reconheceu os méritos. Quantas vezes os petistas tentaram nos convencer de que a democracia era só uma trapaça? Mas falaram mais alto o senso de sobrevivência de Lula — que, em Morales, parece não ser lá grande coisa — e o fato de ele não ser exatamente um homem de convicções ideológicas. Levou o PT para a conciliação — de início, apenas tática — e se deu conta de que o Brasil não era um sindicato. O partido está conformado com a democracia, tal qual é, e suas exigências? Ora, claro que não. A baderna que hoje toma conta da Polícia Federal e da Abin é mais uma evidência de que a tentação de estreitar as larguezas da democracia é permanente. Mensalões, dossiês, tentativas de calar a imprensa, aparelhamento do estado (hoje mais forte do que nunca), retórica e leis de suposta reparação que apelam freqüentemente ao arranca-rabo de classes, tudo isso indica um partido contido, mas não domesticado.

Contido? Sim, contido pelo estado de direito, pelas instituições e pelas bases legais criadas por FHC ao longo de oito anos, que permitiram ao país o ingresso no mundo contemporâneo. É a herança bendita. E é por isso que precisamos reagir com veemência aos que imaginam que podem jogar a lei na lata do lixo para executar suas particulares noções de justiça. O país fez as escolhas certas quando o PT fazia todas as escolhas erradas. Por isso o Brasil não é a Bolívia. E, por isso, Lula não é Evo ou Chávez. Ainda que quisesse, não poderia. Democracia é coisa boa também por isso: contém os apetites humanos.

por Reinaldo Azevedo, em seu
blog na Veja On-line

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