Llosa chegou a criar uma distinção entre as esquerdas latino-americanas: haveria a “carnívora”, como a dos irmãos homicidas Fidel e Raúl Castro e do bandoleiro Hugo Chávez, e a “vegetariana”, do Estimado Apedeuta, entre outros. Jorge Castañeda, intelectual mexicano, ex-esquerdista, hoje moderado (ajudou Vicente Fox a derrotar o PRI no México e foi seu chanceler), também vê as diferenças entre a “boa” e a “má” esquerdas latino-americanas. Lamento. Tanto o conservador como o ex-esquerdista estão errados neste particular. E, no dia 13 de janeiro, expliquei por quê.
Esquerda vegetariana? Data venia, isso não passa de besteira. Até porque a esquerda lulista, se for o caso, deve ser chamada de “herbívora”. E do tipo ruminante.
A diferença não é ideológica ou de essência. A diferença está na história. Explico-me. Os “carnívoros” de Llosa — ou “esquerda má”, na definição de Castañeda — chegaram ao poder à esteira de severas crises institucionais em seus respectivos países. A “esquerda boa” (dita “vegetariana”) assumiu o poder num quadro de estabilidade institucional. Foi assim com Bachelet, no Chile, e com Lula no Brasil.
Para ficar no exemplo doméstico, note-se que Lula não é Chávez porque não pode, não porque não queira. Quem o impede são as instituições fortalecidas, que herdou de FHC e que não conseguiu, embora tenha tentado, enfraquecer. Basta lembrar quantas vezes essa gente tentou botar canga na imprensa. Observe-se, também, que Lula tem sido, sim, um aliado incondicional — INCONDICIONAL, repito — de Hugo Chávez e Evo Morales. No ambiente internacional, a agenda brasileira é, sem tirar nem pôr, a da esquerda.
O que estou dizendo é que essas diferenças a que aludem tanto Castañeda como Llosa são absolutamente irrelevantes. Lula leva o desprestígio das instituições, no Brasil, até onde é possível levar. Se mais não faz, é porque mais não pode.
E hoje...Pois é... Vejam que a “esquerda vegetariana” — NA VERDADE, HERBÍVORA — acaba de incluir Cuba na tal Cúpula da América Latina e do Caribe (CALC). E que exigência se fez àquela tirania? Nenhuma! Ao contrário: Raúl Castro, com 95 mil mortos nas costas, foi tratado como herói e resistente. Sob o comando de Lula, o encontro pediu o fim do embargo americano à ilha (irrelevante, insisto, para a miséria em que vive o povo). E, de novo, sem quaisquer condicionantes.
Castañeda e Llosa não se davam conta, então, que a dita esquerda “vegetariana” (herbívora) era só uma espécie de veículo da esquerda “carnívora”. Alguém poderia perguntar: “Mas que mal tem isso, Reinaldo?” O avanço de regimes que flertam abertamente com a ditadura, como se dá na Venezuela, no Equador e na Bolívia, e a admissão de uma ditadura descarada no grupo dos países respeitáveis — segundo Lula, essa foi a maior conquista da reunião na Costa do Sauípe.
A confusão é gigantesca. Alexei Barrionuevo, do The New York Times, escreve sobre a cúpula: “Apesar de toda a popularidade do presidente brasileiro, Luiz Inácio Lula da Silva, aliado dos EUA, o Brasil não conseguiu impedir os líderes de celebrar a inclusão do presidente cubano, Raúl Castro, nesse encontro. Lula também não pôde impedir que os outros presidentes aproveitassem a ocasião para atacar os Estados Unidos e a Europa por seu papel na crise econômica global, que também afeta a região.”
Viram só? Barrionuevo, coitado!, não entendeu nada. Em primeiro lugar, não sei por que a popularidade de Lula teria alguma interferência numa reunião de chefes de estado. Em segundo, notem que, para ele, o brasileiro estaria algo contrariado com a “celebração” a Raúl Castro e com os discursos antiamericanos. Epa! Calma lá! Ele foi o chefe da torcida — não tão caricato quanto um Chávez ou um Evo Morales. Mas é fato que pôs o indiscutível peso do Brasil na região a serviço de um discurso jurássico. Ou como ler o que publica hoje o Estadão? “Lula afirmou ontem no encerramento da CALC que, para enfrentar a crise financeira internacional, os países da região devem reforçar a intervenção do Estado na economia. Lula também recomendou que as economias regionais evitem optar pelo ajuste fiscal. "O Estado, que não valia nada, passou a ser o salvador da pátria", afirmou Lula, referindo-se às medidas adotadas pelos países desenvolvidos e por nações latino-americanas, que vêm investindo dinheiro do governo em bancos privados e no setor produtivo.”
Num daqueles momentos em que a sua retórica assombra o mundo, o brasileiro mandou ver: “Éramos um continente de surdos, que não nos enxergávamos". Não entendi se a cegueira se juntava à surdez ou se o Apedeuta citava, indiretamente, Elias Canetti e prometia escrever o seu “Uma Luz em Meu Ouvido”... Mais compatível com a reunião, lembrei-me também da figura dos três macaquinhos, mas com uma diferença: a América Latina até podia tapar os olhos e os ouvidos, ser cega e surda, mas tinha e tem uma língua imensa, fala pelos cotovelos — e sempre culpando terceiros pelos seus próprios desastres.
Sei... Há muita gente entusiasmada com tudo isso etc e tal. Bom divertimento. Da formidável jornada de Lula no que pretendem seja a nova política externa brasileira, já podemos colher alguns resultados. Quando o Apedeuta assumiu, o país respondia por 1,1% do comércio mundial. Antes da crise, já estava em 1,1%... Antes de ele assumir, o Brasil guardava prudente distância de ditadores de qualquer viés. Hoje em dia, avançamos muito: já aprendemos a tratar bem os ditadores e candidatos a tanto. Um avanço espetacular.
Ontem, a Câmara aprovou o ingresso da Venezuela no Mercosul — que também TINHA a “democracia” como critério de inclusão (e de exclusão). Ora, Lula já afirmou que o país do bandoleiro é democrático até demais...
Quem disse que não pode haver harmonia entre herbívoros e carnívoros?
por Reinaldo Azevedo
Nenhum comentário:
Postar um comentário