Estou aposentado há mais de 20 anos e, de vez em quando, volto a dar aulas, quando possível para o primeiro ano. É o que fiz neste semestre. Como de costume, no mês de maio começou a greve. Na primeira semana, meu curso foi interrompido por outros alunos, mas, com a anuência dos presentes, metade da aula foi dedicada à análise das reivindicações do movimento. Na segunda semana, depois do conflito com a polícia e da Associação dos Docentes da Universidade de São Paulo (Adusp) ter decretado a greve, deixei de dar aula, o tempo sendo aproveitado para que os estudantes fizessem uma análise política da nova situação. Na terceira semana, contrariando a decisão do sindicado dos professores, do qual estou desligado há muito tempo, fui dar minha aula. Logo no início a sala foi invadida por grevistas para, como eles mesmos disseram, inviabilizar nossos trabalhos. Em 1969, foram os militares que me caçaram a palavra. Em 2009, um bando de alunos exaltados.
Explicara que retomava o curso em protesto contra uma greve que se tornou selvagem, prejudicando sobretudo os alunos. Sou favorável a greves, considero natural que sejam decretadas quando negociações chegam a um impasse. Mas, quando elas se tornam selvagens, quando os representantes perdem o contato com os representados, quando a minoria oprime a maioria, elas devem ser postas em causa. Esta greve por tempo indeterminado, que contraria os ideais e os interesses da maior parte dos universitários, precisa ser denunciada. Uma declaração de greve é sempre uma aposta das lideranças. Quando o movimento chega a um impasse e elas não têm a capacidade de recuar, perdem legitimidade.
É preciso considerar que as greves nos setores públicos se processam quase sem ônus para os grevistas. Professores e funcionários estão seguros de que seus salários serão recebidos, farão de conta que vão repor as tarefas adiadas, por isso as férias forçadas do primeiro semestre costumam se prolongar indefinidamente. Por sua vez, as lideranças estudantis têm se mostrado indiferentes à sua formação intelectual; basta ler seus documentos para constatar sua enorme ignorância, mistura de marxismo vulgar com palavras de ordem vazias.
Quando a greve se isola, aqueles que discordam de seu rumo têm o direito de voltar ao trabalho. Foi o que fiz. Por sua vez, os grevistas têm todo o direito de protestar, de pressionar, mas não têm o direito de usar a violência para impedir que outros não se comportem como projetam. Já que minha aula foi violentamente interrompida, só me resta encerrar o Curso de Introdução à Filosofia programado para este semestre.
Esta greve selvagem atinge apenas uma parte da universidade. Como de costume, os grevistas se encontram sobretudo nas faculdades de sempre – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), Escola de Comunicações e Artes, (ECA) e a Faculdade de Educação – já que as outras unidades trabalham normalmente. Isso acontece porque essas faculdades estão na ponta do conhecimento, porque possuem uma visão mais ampla dos problemas atuais das universidades? Não é o que constato. Pelo contrário, as atuais lideranças grevistas continuam pensando e agindo em termos dos anos 60, como se a sociedade brasileira fosse a mesma, como se o sistema capitalista, em crise, não estivesse se reformulando, como se não estivéssemos sob um Estado de Direito, cujas mazelas reconhecemos, mas cuja vigência sustentamos.
Não são inéditas as greves selvagens nos campi universitários – e isso não só no Brasil. Podem durar meses, a sociedade em torno não lhes dá atenção. A falta de ressonância e a auto-referência da política interna da universidade não revela suas dimensões caducas? Na USP essa velhice é preocupante. Felizmente não a atinge como um todo; mesmo nas três faculdades mais “quentes” existe uma enorme distância entre o fluxo de bons trabalhos e o palavrório e a violência dos ativistas.
Estes se digladiam por migalhas de poder, cada grupo configurando seus interesses particulares como se fossem universais. Assume-se como se fosse representante da vontade geral, por conseguinte legitimado a forçar a obediência da minoria. Mas, na realidade, não passa de minoria a emergir por causa do absenteísmo e da despolitização geral. As decisões são tomadas em ambientes fechados, as greves resolvidas em reuniões manipuladas. Quando os dirigentes percebem que uma reunião está fugindo ao seu controle, passam a prolongá-la até que os presentes se reduzam ao quórum que lhes convém.
Por certo a presença da polícia esquentou os ânimos. Mas não tem propósito confundir a invasão dos militares golpistas nos anos 60 com a vinda da PM a chamado da reitoria e dos próprios alunos. Essa é mais grave, porque evidencia a falência de um projeto educacional, o reconhecimento de que o curso dos trabalhos da universidade pode ser perturbado por baderneiros. Como os autênticos universitários não isolaram os extremistas, como a reitoria não preparou a segurança interna para proteger as pessoas e o patrimônio? E se, em último recurso, a polícia precisasse ser chamada, por que os dirigentes não foram previamente convocados?
Tudo leva a crer que o impasse no qual a USP se meteu provém da esclerose dos seus processos decisórios, começando pelos departamentos, passando pelas congregações, chegando ao conselho universitário e ao núcleo da reitoria. O aumento das decisões burocráticas e fragmentadas libera uma onda de políticas fantasiosas. Representantes de professores, funcionários e alunos, desprovidos de uma base de representados articulados, passam a encenar papéis políticos caducos.
Dois personagens dominam a cena. O primeiro é o porta-bandeira. Um professor, um funcionário, um aluno sobressalente ergue a flâmula da liberdade e da democracia, apresenta-se como se fosse representante da vontade geral, do passado magnífico e do futuro radiante, e fala à massa reduzida o que esta quer ouvir. Depois, calmamente retira-se para a tranquilidade de seus afazeres. Mas a eficácia desse discurso vazio depende da atividade violenta do leão-de-chácara. Este é que interrompe a aula, junta cadeira nos corredores, invade a reitoria, fecha os restaurantes universitários. A voz libertária dos porta-bandeiras está associada à violência dos protofascistas.
Aqui me parece estar um dos nós da questão: a política universitária, isolada dos processos decisórios reais, se canaliza por vias esclerosadas, obedece a parâmetros antiquados, muito distantes do que venha a ser uma política contemporânea. Em nossas sociedades os atores políticos lutam sobretudo por direitos localizados. Quando falam em nome do povo é porque souberam conciliar pontos de vista diferentes sem que essas diferenças se percam. Não operam tendo como pano de fundo uma vontade geral que, mesmo quando se opõe a uma minoria, ainda se imagina como o bem da nação. Este se tece pela conciliação de múltiplos interesses que, não podendo confluir num interesse geral, formam uma colcha de retalho negociada para que a maioria tenha sua vez. Daí sua instabilidade, mas, por isso mesmo, seu enorme potencial democrático. A arbitragem não é monárquica. Resulta da confluência de vários planos e de vários pontos de decisão.
A USP, as outras universidades paulistas, por fim todo o ensino público universitário necessita de uma profunda reforma, que atinja seus processos decisórios para que se tornem mais efetivos e democráticos. Mas que não se confunda democracia com aumento do colégio eleitoral. Pelo contrário, a mera eleição é apenas um lado do processo; torna-se abstrata quando a sociedade civil não se organiza. Que as universidades públicas alimentem suas próprias redes de interesses e projetos, que não percam de vista a missão que receberam da sociedade. Três são os seus princípios já estabelecidos: a educação, a pesquisa e a extensão. Mas não podem ser perseguidos igualmente. Haverá institutos de ensino superior que privilegiam a educação de massa; outros, a pesquisa e a formação de elites; outros ainda, suas relações com a sociedade. Nada mais falso imaginar que todas as universidades confluirão para o mesmo projeto. A USP tem uma enorme vocação para a pesquisa. Que sua massificação não a prejudique.
por José Arthur Giannotti, professor emérito da FFLCH/USP e pesquisador do Centro Brasileiro de Análise
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