
Da 2ª Grande Guerra para cá, o inimigo mudou de endereço. Donos de praticamente metade das riquezas do mundo, era natural a eleição, como alvo preferencial, dos Estados Unidos da América. A nossa América Latina não ficou indiferente a esse movimento. Muita tinta e muito papel foram gastos por aqui para esconjurar os demônios do norte. O maior investidor em cada um dos países da América ibérica e também o maior parceiro comercial, era previsível que a opulência norte-americana despertasse a cobiça dos seus irmãos latinos, uma vez que "não havia outra explicação para o fato de eles serem tão ricos e os demais, tão pobres". Educação, instituições, desenvolvimento tecnológico, nada disso era levado em conta, para não desafinar o canto da procissão. Os ricos são ricos tão-somente porque exploram os pobres e ponto final.
A tese, nestas plagas, ganhou finalmente a sua bíblia, o seu livro sagrado, com a publicação da rancorosa obra do uruguaio Eduardo Galeano As Veias Abertas da América Latina, no início da década de 1970. Escritor talentoso, Galeano pôs a sua pena a serviço da ideologia e conseguiu pintar com cores demoníacas até onde nem sequer um pequeno capeta havia. "A América Latina estava inteirinha a serviço dos EUA!", concluía, alarmado, o escritor.
Li esse livro nos meus primeiros anos de universidade. Embora tudo o que fora afirmado ali fosse de difícil comprovação, o fato é que as verdades convenientes não carecem ser chanceladas pelos fatos: acredita-se nelas e pronto. Após sua leitura, tive ímpetos de tomar o primeiro quartel que avistasse. Ainda bem que não o fiz. A História é uma senhora caprichosa e ainda haveria de dar muitas voltas nos 35 anos posteriores.
A virada do jogo se deu com a posse, como presidente da Venezuela, do coronel Hugo Chávez. Surpresa! No índex do ditador, o Brasil constava pela primeira vez como um dos países exploradores e vilões. Como isso era possível? Pois não foi aqui que se produziu a maior tonelagem de livros antiimperialistas? É verdade, como também é verdade que nós possuímos o maior território da América Latina, temos a economia mais desenvolvida e, ainda por cima, falamos um idioma diferente dos demais na região. Não basta isso para assegurar a nossa candidatura ao clube das nações odiáveis?
Logo depois de Chávez, tomou o poder na Bolívia o pseudo-índio Evo Morales, que, já no dia de sua posse, declarou ser o Brasil a principal potência a ser combatida e anunciou, para logo em seguida, a expropriação de duas usinas brasileiras em território boliviano. A promessa foi cumprida na íntegra. Em seguida, assomou ao poder, no Equador, mais um líder típico, Rafael Correa. Somados estes ao casal Kirchner, da Argentina, que nunca escondeu o seu veio peronista, e mais Alan García, que busca cumprir as suas promessas de austeridade, mas o passado o condena, temos um quadro de volta ao passado, quando todas as nações da América do Sul rezavam pela cartilha populista.
O novo populismo - que acaba de levar a Presidência do Paraguai - é mais sofisticado e complexo do que o antigo. A base popular destes novos regimes não é mais composta pelos sindicatos organizados, mas sim pelos "despossuídos", uma massa disforme, geralmente de origem rural, que se caracteriza por "não possuir alguma coisa: seja terra, seja teto, seja o que for". É a essa gente que arengam os novos messias, prometendo o Céu na Terra e benesses de todos os tipos. A origem dos recursos para tanto, como no populismo tradicional, é incerta. Geralmente se alega que vão conseguir concessões comerciais de países vizinhos mais desenvolvidos.
O ódio aos Estados Unidos, como não podia deixar de ser, está presente no ideário dos novos líderes, já que nossos irmãos do norte continuam sendo a nação mais rica do planeta. Mas, em se tratando de mágoa, os neopopulistas têm outras prioridades de que cuidar. O Brasil é a principal delas e se enquadra perfeitamente no perfil de "imperialista odiável": temos um território avantajado, um parque industrial muito mais moderno e desenvolvido do que os dos nossos vizinhos e, suprema heresia, quase todos dependem do comércio conosco para a saúde de suas economias.
Quem estudou na minha época pode enrolar as suas bandeiras de luta, porque agora os imperialistas somos nós. Todo o rancor que nós destilávamos contra os Estados Unidos agora se voltou contra o Brasil. Aqueles, dentre nós, que derramaram lágrimas ao ler o livro de Eduardo Galeano hoje repensam se é totalmente verdadeira a retórica repleta de impropérios do escritor uruguaio. Afinal, os mesmos argumentos de que ele se valeu para insuflar os intelectuais latino-americanos contra os norte-americanos estão, agora, sendo usados contra nós.
O que mais impressiona nesse novo quadro político é o comportamento ambíguo do presidente Lula. O fato é que ele tem de bajular todas as correntes que o elegeram duas vezes para ocupar o Planalto. E isso implica, entre outras coisas, prestar reverência a todos os líderes sul-americanos que surgirem brandindo uma bandeira com tons avermelhados.
Triste sina a nossa!
por João Mellão Neto (jornalista, deputado estadual; foi deputado federal, secretário e ministro de Estado), em 25/04/2008 no Editorial do Estado de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário