quinta-feira, 7 de agosto de 2008

Revista Câmbio - O Dossiê Brasil

O entardecer do sábado de 19 de julho, na fazenda Hatogrande, a casa presidencial ao norte de Bogotá, o presidente colombiano Álvaro Uribe, sorridente e despreocupado, como poucas vezes, não teve dúvidas em oferecer a seu colega brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, um copo de aguardente antioqueño para mitigar o frio que perfurava os ossos.

O copo selou a primeira parte da intensa jornada que tinha começado na sexta-feira, dia 18 de julho, e que terminaria no domingo com a celebração do Dia da Independência colombiana. Uma celebração que, como nunca, reuniu artistas do nível de Shakira e a qual participou também o presidente peruano Alan Garcia.

A agenda de Lula e Uribe, ao redor dos acordos bilaterais, foi condimentada com muitos elogios públicos. O presidente Uribe agradeceu a Lula e a seu governo de seis anos pelas relações dinâmicas e de confiança. No entanto, em uma reunião particular que mantiveram com pouquíssimas testemunhas, Uribe fez a Lula um breve resumo sobre uma série de arquivos que as autoridades colombianas encontraram nos computadores de Raúl Reyes que comprometia cidadãos e funcionários de seu governo com as Farc.

Diferente do que aconteceu com a informação relacionada aos servidores públicos do governo de Rafael Correa e cidadãos equatorianos, que o governo tornou pública, no caso do Brasil as instruções do presidente colombiano foram de mantê-las reservadas e manejá-las diplomaticamente para não deteriorar as relações comerciais e de cooperação com o governo de Lula.

O governo colombiano usou de forma seletiva os arquivos do computador pessoal de Raúl Reyes. Enquanto com o Equador e a Venezuela foram usados para colocar em proibição Chávez e Correa, hostis com Uribe, com o Brasil foi manipulado por debaixo da mesa para não comprometer Lula, que se mostrou mais hábil e menos belicoso com a Colômbia que seus outros colegas.

Ainda assim, alguns meios brasileiros tinham informação parcial sobre uns poucos arquivos e, por isso, no dia 27 de julho consultaram o ministro da Defesa colombiano, Juan Manuel Santos, que em uma entrevista do jornal "O Estado de S. Paulo" confirmou que o governo colombiano havia informado Lula sobre o tema.
"Há uma série de informações de conexões que entregamos ao governo brasileiro para que possa atuar como considerar mais apropriado", disse Santos, que se absteve de comentar se havia ou não políticos e funcionários oficiais com relações com o grupo que hoje é encabeçado por Alfonso Cano. Às declarações do ministro, o assessor de política internacional do Brasil, Marco Aurélio Garcia, respondeu de forma imediata e qualificou como irrelevantes os dados fornecidos pela Colômbia.

Cura Camilo – Não se sabe com exatidão e o quão detalhada foi a informação que o presidente colombiano Uribe deu a Lula, mas o que poderia ser chamado de "dossiê brasileiro" teria implicações mais sérias que as derivadas da informação relacionada com Venezuela e Equador.

A revista Cambio teve acesso a 85 mensagens eletrônicas que, entre fevereiro de 1999 e fevereiro de 2008, circularam entre Tirofijo, Raúl Reyes, o Mono Jojoy, Oliverio Medina – delegado das Farc no Brasil – e de homens identificados como Hermes e José Luís.

A julgar pelo conteúdo das mensagens, a presença das Farc no Brasil chegou às mais altas esferas do governo Lula, o Partido dos Trabalhadores (PT), a diligência política e a administração de Justiça. Neles, são mencionados cinco ministros, um procurador-geral, um assessor especial do presidente Lula, um vice-ministro, cinco deputados, um conselheiro e um juiz superior.

A personagem central das mensagens eletrônicas é Oliverio Medina, também conhecido como "Cura Camilo", um sacerdote que ingressou nas Farc em 1983 e que teve uma rápida ascensão até tornar-se secretário de Tirofijo. Chegou ao Brasil como delegado especial das Farc em 1997 e esteve na Colômbia durante o processo da zona de Caguán, em que foi chefe de imprensa do grupo.

Por trás da ruptura das conversações em fevereiro de 2002, regressou ao Brasil, onde continuou sua missão, e sua influência chegou até altos níveis da administração Lula, que assumiu o cargo em janeiro de 2003. Mas graças à pressão das autoridades colombianas, foi capturado em agosto de 2005. A Colômbia pediu sua extradição, mas o Supremo Tribunal Federal, de Brasília, não somente a negou, em 22 de março de 2007, como reconheceu Medina como refugiado político.

Até o Curubito – O cárcere não foi obstáculo para que "O Cura Camilo" suspendesse seu trabalho proselitista e propagandista. Prova disso são as numerosas mensagens que ele enviou a Reyes e que mostraram como conseguiu chegar até a cúpula do governo brasileiro.

Quatro das mensagens às que a Revista Cambio teve acesso se referem ao presidente Lula. Em uma delas, de 17 de julho de 2004, Raúl Reyes disse a Trofijo que o governo Lula ajudaria com o acordo humanitário: "Os curas me enviaram uma carta pedindo entrevista com eles do Brasil", escreveu Reyes. Segundo dizem, falaram com Lula e ele assumiu o compromisso de ajudar no acordo humanitário, intercedendo com Uribe para efetuar uma reunião no Brasil.

Na segunda mensagem, do dia 25 de setembro de 2006, Oliverio Medina conta a Reyes: "Não lhe disse que faz alguns dias que Lula chamou o ministro Pablo Vanucchi [ministro da Secretaria Nacional de DD. HH.], indicando-lhe que telefonara para o advogado Ulises Riedel e o felicitara pelo êxito jurídico em sua brilhante defesa a favor de meu refúgio."

No terceiro e-mail, com data de 23 de dezembro de 2006, Medina informa a Reyes que "a Lula e a um de seus assessores que nos ajudaram, enviei o pôster de Aguinaldo." Os funcionários são Silvino Heck, assessor especial do presidente Lula, e Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete, que aparecem mencionados em uma mensagem eletrônica de 23 de fevereiro de 2007, também dirigida a Reyes: "É possível que me visite um assessor de Lula chamado Silvio Heck, que, com Gilberto Carvalho, foi outro que nos ajudou bastante."

Entre os 85 e-mails a que a revista Cambio teve acesso, há um sem data, também enviado por Medina a Reyes, que diz: "Falei com a deputada federal Maria José Maminha. Combinamos que ele vai abrir caminho rumo ao presidente via Marco Aurélio Garcia." Garcia é secretário de assuntos internacionais.

Não menos comprometedoras são aquelas mensagens em que aparecem mencionados alguns ministros. Em uma delas, dirigida a Reyes o dia 4 de junho de 2005 por um tal de José Luis, figura o nome do ministro da Previdência, José Dirceu. "Chegou um jovem de uns 30 anos e se apresentou como Breno Altman (dirigente do PT) e me disse que vinha da parte do ministro da Previdência José Dirceu, que, por motivos de segurança, eles haviam acordado que as relações não passariam pela Secretaria de Relações Internacionais, senão que fizeram diretamente por meio do ministro com a representação de Breno."

Ao final da mensagem, José Luis disse que o governo brasileiro e o PT dariam proteção a Medina enquanto avança o trâmite da extradição: "Perguntei se poderíamos estar tranqüilos, que não iriam seqüestrá-lo ou deportá-lo para a Colômbia e ele me respondeu: ' Podem ficar tranqüilos' ". Em uma mensagem do dia 24 de junho de 2004, Reyes comenta com Media sobre a possível saída de José Dirceu do Gabinete e lhe disse: "Com certeza, esta medida em proveito dos detratores de Lula pode afetar a incipiente abertura das relações que eles têm conosco."

Amorim – As Farc também tentaram chegar ao escritório do Ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim. Em uma mensagem do dia 22 de fevereiro de 2004, José Luis escreve a Reyes: "Por intermédio do legendário líder do PT, Plínio Arruda Sampaio, chegamos a Celso Amorim, atual ministro de Relações Exteriores. Plínio nos mandou falar para Albertao (conselheiro de Guarulhos) que o ministro está disposto a nos receber. Que assim que tiver espaço em sua agenda, nos receberá em Brasília."

O procurador e o juiz – O embaixador das Farc fez tão bem seu trabalho que também conseguiu chegar até o procurador Luis Francisco de Souza, que é mencionado em uma extensa mensagem eletrônica do dia 22 de agosto de 2004, que Medina e José Luis enviaram a Reyes e a Rodrigo Granda: "Ele deu o seguinte conselho: andar com uma máquina fotográfica e, se possível, com um gravador para em caso de voltar a parar um agente de informação, fotografá-lo e gravá-lo, tendo o cuidado de não deixar que ele pegue a câmera e o gravador. Que em relação ao que aconteceu, façamos uma denúncia dirigida a ele como Procurador para fazê-la chegar ao chefe da Polícia Federal e à Agência Brasileira de Informação."

Algumas mensagens foram escritas durante o processo da zona de Caguán e envolvem um prestigiado juiz e um alto ex-oficial das Forças Armadas Brasileiras. Por exemplo, em um e-mail do dia 19 de abril de 2001, Mauricio Malverde informa a Reyes: "O juiz Rui Portanova, amigo nosso, nos falou que quer ir aos acampamentos e receber instrução e conhecer a vida das Farc. Pague a viagem dele." Portanova era, então, juiz superior da Corte Estatal do Rio Grande do Sul, de Porto Alegre.

Três dias antes, em 16 de abril, Medina relata a Reyes um encontro entre Raimundo, Pedro Enrique e Celso Brand - ao que parecem, laços das Farc no Brasil – com o brigadeiro Iván Frota, ex-chefe da Força Aérea Brasileira. "O homem se interessou e disse que gostaria de ter um encontro pessoal conosco. Disse que está começando a amadurecer a tomada da base de Alcântara pelas forças nacionais para impedir que os Estados Unidos fiquem com os 600 quilômetros quadrados que estão sob seu domínio."

A pequena amostra dos 85 emails a que a Revista Cambio teve acesso revelam a importância do Brasil na agenda exterior das Farc, manejada por Raul Reyes, e não cabe dúvidas de que "O Cura Camilo", para sustentar a estratégia continental da guerrilha, aproveitou a conjuntura criada pela ascensão de poder de Lula e seu influente Partido dos Trabalhadores para chegar até as mais altas esferas do governo.

E, se os e-mails são apenas indícios de um possível compromisso do governo Lula com as Farc, pois nenhum dos funcionários enviou mensagens pessoais a algum dos membros do grupo guerrilheiro, despertam muitas interrogações que exigem uma resposta do governo brasileiro.

Os contatos das Farc – A expansão das Farc na América Latina não somente incluiu funcionários dos governos da Venezuela e Equador, como também comprometeu a destacados dirigentes, políticos e altos membros do Partido dos Trabalhadores, ao qual o presidente Lula pertence. Além disso, o grupo guerrilheiro manteve contatos com procuradores e juízes do Brasil.


A LISTA DOS CITADOS:
- José Dirceu, ex-ministro da Casa Civil
- Roberto Amaral, ex-ministro da Ciência
- Erika Kokay, deputada
- Gilberto Carvalho, chefe de Gabinete
- Celso Amorim, chanceler
- Marco A. García, assessor para assuntos internacionais
- Perly Cipriano, subsecretário de Promoção DD.HH.
- Paulo Vanucci, ministro da Secretaria de DD.HH.
- Selvino Heck, assessor presidencial
Publicado pelo Diário do Comércio em 01/08/2008 e originalmente pela revista Cambio (versão on line).
Para maiores informações, recomenda-se acessar o links
http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/1097437.htm
http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/1097438.htm
http://www.dcomercio.com.br/noticias_online/1097449.htm

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