sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Os Heróis de Lula

Para Lula, mortos são heróis, e não vítimas
por Fabiana Cimieri e Felipe Werneck
de O Estado de S.Paulo - 13 de agosto de 2008

Sem citar diretamente a polêmica sobre tortura, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou ontem que estudantes e operários mortos no regime militar devem ser tratados como heróis, e não como vítimas. “Toda vez que falamos dos estudantes e operários que morreram, falamos xingando alguém que os matou. Esse martírio nunca vai acabar se a gente não aprender a transformar os nossos mortos em heróis, não em vítimas”, discursou Lula, em ato durante o qual assinou mensagem encaminhando ao Congresso projeto de lei reconhecendo a responsabilidade do Estado pela destruição da sede da União Nacional dos Estudantes (UNE) e propondo uma indenização à entidade.

Para Lula, o Brasil não tem heróis. “A gente só lembra de Tiradentes. O Brasil tem muitas lutas importantes, mas nós não os cultuamos para dar valor ao que essas pessoas fizeram”, disse. “Imagina se a Frente Sandinista (de Libertação Nacional) ficasse lamentando todos os que (Anastasio) Somoza matou? Imagina se o Fidel Castro ficasse lamentando todos os que o (Fulgencio) Batista matou?”, questionou o presidente.

O terreno na Praia do Flamengo, em que passou a funcionar um estacionamento, foi retomado pela UNE em 2007. A nova sede tem projeto de Oscar Niemeyer. “É importante que a UNE e a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas) articulem um projeto de convencimento dos deputados e dos senadores. O dinheiro está no Ministério da Justiça. A gente não pode dar porque senão vão vir muitos processos contra nós”, disse o presidente.

Também presente no local, o governador de São Paulo, José Serra (PSDB), foi vaiado por centenas de estudantes e reagiu em seguida, sorridente, ao iniciar seu discurso: “Calma, calma: 2010 ainda está longe”, declarou.

Serra era presidente da UNE em 1.º de abril de 1964, quando a sede da entidade foi incendiada, à noite, depois de ter sido atacada, após o golpe militar. Segundo ele, o prédio foi o principal foco de violência no dia do golpe por causa do “papel que os estudantes tinham na mobilização democrática”.

“A principal característica política da UNE era a defesa da democracia, contra rupturas do processo democrático, viessem de onde vissem, ou golpe de esquerda, ou golpe de direita. A gente vivia em outro País”, disse Serra. Na época, havia cerca de 140 mil estudantes universitários, e hoje o número é no mínimo 40 vezes maior, calculou o governador.

O tucano elogiou o “significado simbólico” do ato assinado ontem. “O prédio foi vítima de um duplo ataque. O segundo foi mais abominável. O primeiro, do incêndio, fez parte da briga do dia do golpe. Não dá para justificar, mas dá para explicar o enfrentamento. Mas o segundo, em 1979, quando a UNE foi demolida, foi uma coisa puramente ranheta e raivosa, porque não havia motivo para se fazer isso.”

Antes do discurso, em entrevista, Serra disse considerar que o momento não é “adequado” para a discussão sobre tortura e anistia. “Em todo caso, tem o Judiciário, ele é que deve interpretar a lei”, disse.


Comento:
Não sei se Lula é um grande cínico que menospreza a inteligência alheia ou se realmente acredita nas besteiras que diz. Sei apenas que distorcer a História para dela se apropriar é um de seus passatempos prediletos. Ele já se comparou - vamos lembrar - a Tiradentes e a Jesus Cristo. Agora deu de criar heróis por decreto, como Deus dando nome às coisas que criava no Gênese. Sei também que ele é esperto, muito esperto. Tão esperto - melhor dizendo: espertalhão - que deixou malandramente seus cães de fila Tarso Genro e Paulo Vanucchi defenderem por semanas a revogação da Lei da Anistia para punir os torturadores da época da ditadura militar - mas não os terroristas de esquerda -, pois, afinal, "tortura não é crime político" (terrorismo, pelo visto, deve ser algum tipo de esporte). Agora, dá a questão por encerrada, pedindo a todos, bem a seu estilo conciliador aprendido nos tempos de sindicato no ABC paulista, que se dêem as mãos e esqueçam essa quizília toda. Ou seja: deixou Tarso e Vanucchi falarem durante meses para ver no que ia dar. Agora que viu que não ia dar certo, deixa-os falando sozinhos. E se sai com uma solução realmente lulista: os mortos pela repressão não foram vítimas, mas "heróis", e pronto. Então tá.

Lula, bem fiel a seu estilo, não dá nome a seus "heróis". Diz apenas que foram "estudantes e operários". É... É bem mais fácil cultuar heróis anônimos do que seres de carne e osso. Bem mais cômodo, certamente, é reverenciar categorias sociais - estudantes, operários, torcedores do Flamengo - do que pessoas com rosto e nome. Gente, por exemplo, como o ex-capitão Carlos Lamarca, a maior figura da luta armada no Brasil nos anos 60 e 70, e que, em seu caminho glorioso rumo ao Panteão da Pátria, ia fuzilando perigosíssimos vigias de banco e estraçalhando a cabeça a coronhadas de ultra-reacionários tenentes da PM capturados e amarrados... Lamarca, aliás, já foi homenageado postumamente com a promoção a general do Exército. Não duvido que dêem, um dia, seu nome a uma rua próxima ao novo prédio da UNE.

Mas, mesmo sem citar nomes, Lula também dá umas dicas de quem são seus heróis. Sua referência aos sandinistas e a Fidel Castro não deixa dúvidas sobre quem eles seriam. Ele menciona os companheiros nicaragüenses e o Coma Andante cubano como exemplos do que fazer com os torturadores - ou com qualquer um que ouse se opor à nova ordem revolucionária. Para Lula, não adianta ficar lamentando os mortos. É preciso, segundo ele, fazer como os sandinistas e Fidel. Os sandinistas, como Daniel Ortega, e o tiranossauro do Caribe realmente não ficaram lamentando seus mortos. Trataram logo de mandar seus adversários, e inclusive ex-aliados, para o paredão. Uns 17 mil, no caso de Cuba, sem contar os que morreram afogados ou devorados por tubarões tentando fugir da ilha. Ortega, aliás, foi quem fez o elogio fúnebre de Manuel Marulanda, o "Tirofijo", chefão das FARC morto alguns meses atrás. São esses os heróis dessa gente.

Eu ficaria calado e não daria a menor pelota para as palavras do Apedeuta e da molecada porralouca da UNE se fosse apenas mais uma demonstração de demagogia e oportunismo lulista numa manifestação de uma entidade insignificante cooptada e presidida por pelegos. Mas simplesmente não consigo compactuar com a mistificação e a falsificação histórica. É algo que, como direi?, está no meu sangue, é um vício de formação - no caso, pode-se dizer, de formação acadêmica, intelectual. A idéia que Lula e seus bajuladores querem transmitir é que os que lutaram contra a ditadura militar, com ou sem armas na mão, eram todos, indistintamente, lutadores pela liberdade e pela democracia. Mais que isso: a própria democracia que temos hoje, segundo essa visão, só teria sido possível porque esses "heróis", os heróis de Lula - como Carlos Lamarca -, pegaram em armas para restaurar as liberdades democráticas no Brasil. Com isso, criam dois mitos poderosos, que até hoje norteiam (ou desnorteiam) muitas cabecinhas esquerdistas pelo Brasil afora: que a luta armada foi, no fundo, uma luta democrática e que eles, os lulistas e seus aliados, são os "pais" da democracia "neste país".

Ambas as idéias são falsas, como já escrevi aqui. Não vou me estender muito sobre isso desta vez. Basta lembrar o que eles não dizem: que a luta armada precede em muito o AI-5, em 1968, e mesmo o próprio ano de 1964, tendo sido, portanto, não uma luta pela democracia, mas pelo estabelecimento, nestas terras, de uma ditadura totalitária, provavelmente socialista, como a Cuba de Fidel Castro. E que, nessa luta, os terroristas ("guerrilheiros", segundo a novilíngua esquerdista e politicamente correta) lançaram mão da violência, inclusive contra pessoas inocentes. E isso tanto depois quanto antes de 1964.

"Mas os que foram perseguidos pela repressão já foram punidos; os torturadores, não", li outro dia num artigo de Clóvis Rossi na Folha de S. Paulo. Sim, e daí? Nem todos os que foram perseguidos, e inclusive praticaram assaltos e atentados, foram punidos. E, mesmo que tivessem sido, que tipo de punição deve receber quem assalta bancos, seqüestra e explode bombas, em qualquer regime político? Além disso, só porque os que os caçaram não sofreram punição, isso é motivo suficiente para querer mudar a Lei?

E Serra, hein? Muita gente estranhou a presença dele no convescote lulista-estudantil. Não admira, visto que a UNE hoje nada mais é do que um aparelho do PCdoB e uma caixa de ressonância do governo lulista, logo uma claque anti-tucana. Bom, não sou tucano, assim como não sou lulista, então posso falar dos dois. Serra, para quem não sabe, era quem presidia a UNE quando do contragolpe de 1964. Daí sua afirmação louvando o "papel dos estudantes na mobilização democrática" do período. [Mas já sabemos: o papel deles era nada democrático, pois, senão todos, ao menos em sua grande maioria, era adepta do comunismo, tendo retratos, panfletos e livretos de Che Guevara, Mao Tsé-Tung e Fidel Castro.]

Novamente, uma falsidade histórica. A UNE - uma inutilidade que, hoje em dia, serve apenas para desviar dinheiro de carteiras de estudante e aplaudir o Lula -, era, no Brasil pré-64, uma das entidades, como o CGT e o PUA, que puxavam o coro da revolução social, usando como pretexto as tais "reformas de base" do governo João Goulart. Já está sobejamente demonstrado, mas quase ninguém parece dar importância, que a idéia de que os militares deram o golpe em 64 para acabar com um governo democrático é uma balela. Jango pretendia, com o apoio dos sindicatos, dos militares subalternos e dos estudantes, desfechar um golpe para afastar a oposição e manter-se no poder, instituindo uma espécie de República sindicalista. Não foi por outro motivo que ele tentou, sem sucesso, impor o estado de sítio no país, em outubro de 1963. Se havia alguém que defendia a democracia, não era o governo, nem os militares. Quando estes finalmente derrubaram Jango e tomaram o poder, não havia ninguém que defendesse a democracia, ela já estava morta: faltava somente enterrá-la. A disputa, até então, não foi entre um governo democrático e conspiradores contra a democracia, mas entre golpistas de esquerda e golpistas de direita. Ganharam os de direita. Os de esquerda, inconformados, passaram a se dizer democratas.

O governo Lula e os esquerdistas em geral se apropriaram, há anos, das palavras de ordem democráticas para justificar suas práticas e objetivos antidemocráticos. Agora tentam se apropriar da História. Não há um único documento de nenhuma organização clandestina de esquerda no Brasil dos anos 60 e 70 que defenda, mesmo de forma remota, a democracia como um objetivo a ser alcançado. Mesmo assim, a versão praticamente oficial dos "anos de chumbo" é que o terrorismo não era terrorismo, e que foi inclusive moralmente superior à tortura. Mais: a luta armada, segundo essa visão, era uma luta democrática e a favor dos direitos humanos! Em um vídeo institucional que está sendo veiculado na TV em comemoração pelos 60 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, aparecem imagens de protestos estudantis nos anos 60 e de Oscar Niemeyer, o arquiteto comunista admirador e amigo de Fidel Castro. Não me espanta que seja ele o autor do projeto do novo prédio da UNE. Aliás, não me admira que ele apareça numa propaganda do governo Lula sobre direitos humanos.
Lula disse que infelizmente o Brasil não tem heróis. Agora ele quer criá-los por decreto. A vítima, como sempre, é a História.

por Gustavo Bezerra


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