O ex-deputado federal Wilmar Rocha, de Goiás, foi presidente do Instituto Tancredo Neves (ITN) na época em que eu fui diretor, em meados dos anos 90. Grande sujeito, missão ingrata a dele. Explico: por força de lei, todos os partidos devem criar um instituto de estudos e pesquisas, para melhor fundamentarem seu posicionamento no Congresso. Até aí, tudo bem. Ocorre que, no Congresso, ninguém, em sã consciência, é capaz de dispor de um minuto sequer de seu tempo para discutir ideologia. Não que esta não seja importante. O problema é que, na prática, cada um adapta o discurso da maneira que quiser. Restamos nós, os bravos mosqueteiros do ITN, para formular, de maneira simplificada, simplória até, os postulados de nosso partido. Alguns, a esta altura, vão dizer que o PFL - hoje DEM - não tem ideologia. Acontece que o mesmo problema afligia todos os partidos, inclusive o (então vestal) Partido dos Trabalhadores.
Éramos meia dúzia de deputados, mas a nossa ação sugeria que fôssemos mais de cem. Devemos tudo isso ao Wilmar Rocha, que, a par de seus sólidos conhecimentos sobre sociologia política, tinha um senso de marketing inigualável.
Pois bem, o Wilmar esteve em São Paulo na semana passada, para lançar o seu excelente e atual livro O Fascínio do Neopopulismo, que ele diferencia do antigo em função de algumas características básicas: o velho populismo alavancava o seu poder graças ao apoio incondicional dos sindicatos urbanos, aos quais concedia, em troca, vantagens salariais e privilégios trabalhistas; o neopopulismo, ao contrário, prefere cortejar a massa dos destituídos de tudo - são os sem-terra, os sem-teto, os sem-emprego.
Essa mudança estratégica se deve ao fato de o operariado, hoje, estar longe de ser a camada mais sacrificada da sociedade. De modo geral, o operário tem casa própria, TV em cores, automóvel e, cercado pelo conforto que seus eletrodomésticos lhe proporcionam, não tem mais disposição para sair às ruas em passeatas de protesto.
O livro de Wilmar Rocha traz numerosos exemplos de como estão pipocando pela América Latina presidentes populistas, agora com ideologia renovada, e a ameaça que isso representa. O populismo, seja de que tipo for, redunda sempre em desastre. No início, o governo começa a gastar mais do que arrecada e, assim, pode dar aumentos salariais polpudos aos proletários e tocar um sem-número de programas sociais. Na segunda fase, o governo descobre que precisa criar receitas para fazer frente às crescentes despesas e passa a emitir bônus da dívida pública, na esperança de que essa fonte de receita seja inesgotável. Na terceira fase, o volume de bônus em poder do público é tão grande que ninguém mais acredita que o governo poderá pagá-los. O resto é sabido: a nação entra em colapso, não sem antes drenar toda a poupança do público.
Presidentes ou chefes de Estado personalistas existem em todas as partes do mundo. Nicolas Sarkozy, na França, é um deles, Silvio Berlusconi, que governou a Itália até recentemente, é outro. Barak Obama, caso venha a vencer as eleições norte-americanas, é um terceiro.
Por que eles não são classificados como populistas? Porque o poder de mando deles, uma vez no poder, é baixo. Quer falemos de França, Itália ou EUA, são todos países politicamente amadurecidos, cujos povos resistem, com ferocidade, a qualquer tentativa de conspurcar as suas instituições.
A América Latina é o berço e, felizmente, a única pátria do populismo. Na África, simplesmente não existem instituições; nos países desenvolvidos, elas são fortes demais para que alguém ouse confrontá-las. Já na América Latina, as instituições existem, porém são fracas demais para resistir às investidas de aventureiros dotados de uma boa dose de carisma.
Pesquisa recente levada a cabo em toda a América Latina demonstra o desapreço que nossos povos têm pelas instituições democráticas. Questionados a respeito, apenas 55% dos pesquisados consideraram a democracia o melhor regime. Esses números também são válidos para o Brasil, com uma agravante: boa parte dos pesquisados condicionou sua resposta a uma circunstância - se a economia for bem, se os salários subirem, etc.
Acende-se, assim, uma luz vermelha no painel. O mais correto seria pensar que a democracia é importante quando as coisas vão bem e imprescindível quando vão mal (grifo meu). Caso contrário, nós estaremos à mercê do primeiro tiranete que apareça, em situações de crise, prometendo tão-somente que, por intermédio dele, "dias melhores virão".
Prova disso tive recentemente, quando um aluno do terceiro ano de uma das mais renomadas faculdades de Administração do Brasil me procurou para que eu desse um testemunho vivo em seu trabalho de escola sobre os anos da ditadura. (É nessas horas que percebemos que estamos ficando velhos...)
Procurei mostrar-lhe que a nossa ditadura foi ambivalente: truculenta e cruel no trato com a oposição, com os dissidentes e até mesmo com os descontentes, eficiente e bem planejada no que tange à administração pública.
Para surpresa minha, a essa altura, aquele rapaz que estudava na fina-flor da elite acadêmica, me aparteou: "Mas, se os governos militares tocavam a economia e a administração pública com muito mais eficiência do que o regime democrático, não teria sido mais inteligente mantê-los no poder?"
Confesso que fiquei perplexo. Não é só ele que pensa assim. Provavelmente, a maioria de seus colegas de faculdade pensa dessa forma. Arrisquei uma resposta: "O que se discutia ali era a liberdade. E a liberdade não é um bem que se possa trocar no mercado."
Terminamos a entrevista, notei que ele não ficou nem um pouco convencido com a minha resposta. Queira Deus que não seja mais um, no futuro, a cerrar fileiras com os ditadores.
Fonte: O Estado de São Paulo - Opinião - 28/03/2008
*João Mellão Neto, jornalista, deputado estadual, foi deputado federal, secretário e ministro de Estado E-mail: j.mellao@uol.com.br
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