sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Justiça e Memória Seletiva

Leio hoje na imprensa: o juiz espanhol Baltazar Garzón ordenou nesta semana que se comece a reunir informações sobre os desaparecidos durante a Guerra Civil na Espanha e a subseqüente ditadura, com o objetivo de - abre aspas - "montar uma lista confiável de vítimas dos conflitos".

Para quem não conhece o personagem citado acima, vou apresentá-lo: Baltazar Garzón é aquele juiz que, em 1998, causou uma onda de furor mundial ao mandar prender e tentar extraditar para a Espanha o ex-ditador do Chile Augusto Pinochet, falecido dois anos atrás. Desde então, ele, Garzón, tornou-se conhecido mundialmente como um perseguidor implacável de ex-ditadores, sobretudo generais sul-americanos, e um herói dos direitos humanos para os esquerdistas.

O que quer o meritíssimo juiz? Cito mais uma vez a imprensa, no caso o portal Terra de hoje, 4 de setembro: "Garzon emitiu um pedido para que líderes religiosos, prefeitos e outras autoridades coletem informações sobre as pessoas mortas pelos exércitos do general Franco após a ascensão dele ao poder, em 17 de julho de 1936". Aparentemente, algo muito justo. Mesmo sabendo-se que Franco morreu trinta e três anos atrás, em 1975, e que desde então a Espanha é uma democracia. Aparentemente. Porque, se o objetivo do juiz Garzón fosse mesmo fazer justiça, ele não se cingiria a um lado somente da contenda. Leiam de novo a notícia. Lá está escrito, por acaso, que Garzón mandou que se investigassem as mortes causadas pelos dois lados do conflito, ou simplesmente os mortos da Guerra Civil Espanhola? Nada disso. O que ele quer são informações sobre as pessoas mortas - vou repetir, mais uma vez entre aspas - "PELOS EXÉRCITOS DO GENERAL FRANCO após a ascensão dele ao poder" etc.

Perceberam a manobra? Entenderam a impostura? Captaram a tapeação, a empulhação, a mentira?

A iniciativa do juiz Garzón não tem por objetivo fazer justiça coisa nenhuma. É mais uma malandragem retórica, uma tentativa espertalhona de distorcer a História travestida de humanitarismo jurídico. No caso, a História da Guerra Civil Espanhola, um conflito que resultou em cerca de meio milhão de mortos entre 1936 e 1939. Aqui, repete-se com esse episódio o mesmo que se tornou lugar-comum para outros fatos históricos do século XX, como a Guerra do Vietnã e as ditaduras militares sul-americanas: as vítimas foram de um lado apenas. Até hoje, quando se fala na Guerra Civil Espanhola, a primeira coisa que vem à mente é o bombardeio da cidade de Guernica pela Legião Condor de Hitler a serviço dos franquistas - fato imortalizado no célebre quadro de Pablo Picasso, que pintava coisas a soldo do Partido Comunista -, e não o que os dois lados fizeram. É preciso lembrar.

O meio milhão de mortes no conflito que ensanguentou a Espanha que o juiz Garzón deseja ver investigadas não se deveram unicamente aos "exércitos de Franco", como ele diz (ou seja, à frente de setores nacionalistas, conservadores e monarquistas que se rebelaram contra a Segunda República espanhola, proclamada em 1931), mas também - e isso não convém lembrar -, às forças republicanas, integradas por liberais, socialistas e, principalmente, comunistas. Estes últimos, na luta contra os franquistas, cometeram igualmente inúmeras atrocidades, chegando ao ponto de fuzilar centenas de padres católicos e incendiar igrejas. Além disso, grande parte das vítimas do lado republicano caíram sob as balas não dos exércitos nacionalistas de Franco, mas dos agentes da NKVD (a polícia política soviética, antecessora do KGB) do ditador Josef Stálin, que foram despachados para a Espanha não para combater os fascistas e defender a democracia, mas para liquidar os adversários da URSS nas fileiras republicanas, como os trotskistas e os anarquistas. E cumpriram essa missão, vale dizer, com métodos científicos, como um bala na nuca. Para quem quiser saber mais como ocorreu esse banho de sangue, um dos massacres auto-infligidos menos conhecidos do século XX, recomendo a leitura de "Lutando na Espanha", de George Orwell, e de "A Batalha da Espanha", de Antony Beevor. Será que o juiz Garzón vai pedir que se investiguem essas mortes também?

De fato, o senso de justiça do sr. Garzón parece ser bem seletivo. Implacável para com generais de pijama sul-americanos, a ponto de compará-los aos agentes nazistas e de reivindicar, para si, jurisdição universal para caçá-los onde quer que estejam, Garzón costuma ser bem tolerante, para dizer o mínimo, quando se trata de outras ditaduras. A de Fidel Castro em Cuba, por exemplo. Certa vez, perguntado por que não se mostrava tão implacável e inquiridor com o tiranossauro do Caribe, ele disse que não podia fazer nada contra chefes de Estado ainda no exercício de suas funções. Ou seja: era preciso esperar o ditador aposentar-se, ou morrer, para pensar em fazer alguma coisa. Pois bem. No começo deste ano, após 49 anos de ditadura ininterrupta, Fidel renunciou - pelo menos foi o que se disse na imprensa - aos cargos que ocupava no Estado cubano. Tecnicamente, portanto, o barbudo não é mais um chefe de Estado, e, segundo o argumento do juiz Garzón, pode ser processado por seus crimes. Até o momento em que escrevo estas linhas, porém, o excelentíssimo juiz ainda não tinha iniciado o processo do ditador cubano, responsável, entre outras coisas, por 17 mil fuzilamentos e mais 78 mil afogados tentando fugir da ilha-prisão de Cuba desde 1959. Como diria o Capitão Nascimento: um verdadeiro fanfarrão, esse juiz Garzón.

Alguns dias atrás, Garzón esteve no Brasil, em plena polêmica da revisão, ou não, da Lei de Anistia. Na ocasião, em entrevista para a Carta Capital, Garzón endossou a tese de Tarso Genro e defendeu a punição para os torturadores da época do regime militar. Afirmou que tortura é crime imprescritível. Estranhamente - ou não -, não disse nada sobre o terrorismo das organizações armadas de esquerda que mataram várias pessoas inocentes no mesmo período. Será que o terrorismo deixou de ser, também, um crime imprescritível? Ou será que - o mais provável - os mortos, nesse caso, estavam do lado errado?

"Ah mas então você não quer que se investiguem as mortes". Não, nada disso. Não estou dizendo que não se deve investigar, nem que o melhor é esquecer. Mais uma vez: Não! É justamente o contrário: quero que se investigue sim, o destino dos mortos e desaparecidos, e que a História - TODA a História, e não parte dela - seja lembrada e esclarecida. Quero, inclusive, que os torturadores paguem por seus crimes, e que, se for para revisar a Lei de Anistia de 1979, que assim seja. Mas quero que os que mataram, feriram e torturaram - sim, torturaram! ou vai dizer que seqüestro não é uma forma de tortura? - do "outro lado", ou seja, do lado que hoje pede "justiça" e a revisão da Lei, paguem também. É isso, aliás, o que me distingue do sr. Baltazar Garzón, assim como de seus amigos esquerdistas: eu quero que a História seja desvendada por inteiro; eles querem que seja pela metade - a metade que lhes convém, claro.

A manipulação da História pelas esquerdas não é um fato novo. É uma tática sistematicamente empregada, há décadas, para fazer todos acreditarem que ela é sempre vítima, jamais o lado agressor. Fazem isso para incutir nos espiritos ingênuos ou mal-informados (ou seja: na maioria das pessoas) a idéia de que seus crimes são virtuosos e que qualquer um que os denuncie é um salafrário e um bandido, um "reacionário", até mesmo um "fascista".

Para atingir esse objetivo, os esquerdistas não hesitam em esconder uma parte da verdade, ou em se basear nela para propagar mentiras, ou em recorrer à mentira pura e simples. Um exemplo histórico é a falsa acusação feita pela URSS no Tribunal de Nuremberg, em 1946, segundo a qual os nazistas teriam sido os responsáveis pelo massacre de milhares de oficiais militares poloneses na floresta de Katyn, em 1940. Sabendo que os nazistas estavam na berlinda, universalmente execrados como autores de crimes horrendos contra a humanidade, e que qualquer delito que lhes fosse imputado teria uma boa probabilidade de ser considerado, os comunistas tentaram atribuir aos nazistas mais esse crime. Com esse ardil, buscaram encobrir sua própria participação no episódio - foram os comunistas, e não os nazistas, os autores da chacina, revelou-se depois - e, de quebra, fazer todos esquecerem sua aliança com os próprios nazistas - quando ocorreu o massacre, Stálin e Hitler tinham acabado de dividir entre si a Polônia, após a assinatura do infame Pacto de "não-agressão" entre os dois ditadores, em agosto de 1939. Esse é apenas um exemplo, entre tantos, de como as esquerdas se habituaram a distorcer a História para atender a seus próprios interesses.

Algum tempo atrás escrevi aqui que o clube mais numeroso que existe é o dos inimigos das ditaduras passadas e amigos das ditaduras presentes. Se essas são de esquerda, então, viram não amigos, mais militantes das mesmas. Este é exatamente o caso do juiz Baltazar Garzón.


por Gustavo Bezerra, no Blog do Contra

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