segunda-feira, 1 de setembro de 2008

Fragmentos de Socialismo

Do topo dos 33 andares do edifício Focsa, o mais alto da cidade, que serviu nos anos gloriosos de residência de trânsito para os soviéticos, sob o jato de um sol aplastante, a paisagem desvenda os quatro tempos de Havana. A leste, além das antigas fachadas imponentes do Malecón, estende-se Havana Velha, o núcleo colonial, circundado pela baía em meia lua e vigiado pelas fortalezas espanholas. Ao redor, bem abaixo, divisa-se o plano ortogonal do Vedado, o bairro de mansões ocupado desde meados do século 19 por uma elite que se separava fisicamente dos pobres. A oeste, espraia-se Miramar, o “novo Vedado” da década de 20 do século passado, cujas mansões abrigam agora as embaixadas e os hotéis de praia. Entre o núcleo colonial e o Vedado, a partir do grande bulevar do Prado, está incrustada Havana Central, a larga seqüência de quarteirões erguidos no início do século 19. De longe, é como se essa faixa intermediária da cidade tivesse sido extensamente bombardeada. Nas suas habitações arruinadas, vivem quase todos os “cubanos comuns” de Havana que escaparam de uma transferência compulsória para os conjuntos habitacionais dos arcos periféricos.

“Cubanos comuns”, ou “cubanos a pé”, são expressões que se ouvem vezes sem conta nas ruas de Havana. É assim que as pessoas destituídas de privilégios descrevem a si próprias. Os demais são os “hijos de papá”, uma categoria que abrange todos os que, em virtude de relações especiais próximas ou distantes com o partido único, têm acesso regular e legal ao CUC. Peso cubano convertible, CUC, é o pote de ouro no fim do arco-íris. A caça ao CUC converteu-se no esporte nacional cubano. Tê-los significa um pouco de cidadania, expressa sob as formas de sabonete, desodorante, perfume, tênis, carne de vaca, gasolina, um celular “pai-de-santo”, a oportunidade fugaz de navegar na internet. Não tê-los significa vegetar no limbo do peso cubano, a moeda oficial regular, que é a moeda de mentira.

Juan e Clara, como os batizo agora, abordaram-me numa rua da zona limítrofe entre Havana Velha e Havana Central. Conversamos, caminhando rápido, transgredindo a regra que proíbe “cubanos comuns” de interagir com estrangeiros. Minutos depois, dois rapazes de azul, policiais adolescentes com salários bem superiores aos de médicos, restabeleceram a ordem. O casal de cubanos teve que apresentar documentos e Juan foi convidado a acompanhá-los à delegacia próxima. Fui junto, apresentei-me como um amigo de anos, inscreveram nossos nomes num livro velho de ocorrências. Democracias administram as coisas. Ditaduras totalitárias só administram os espíritos. Havana Central verga sob a sujeira e um odor entranhado de urina.

Solís é professora primária e dá aulas particulares - ilegalmente. É essa sua forma de acesso precário ao CUC. O CUC vale cerca de 20% mais que o dólar e funciona como ponte entre Cuba e a economia internacional. A presença da moeda almejada aumenta com o crescimento do turismo e das remessas de cubano-americanos para seus familiares na ilha. Um CUC vale 24 pesos cubanos, a moeda interna, desprezada. Um professor primário ganha algo em torno de 15 CUCs mensais. Um médico, cerca de 20. Tudo que ultrapassa o limite estrito da sobrevivência é vendido apenas em pesos convertibles. Na África do Sul da minoria branca, o sistema do apartheid separava as pessoas segundo a “raça”. Na Cuba do desmantelamento do socialismo real, estabeleceu-se um apartheid monetário.

A palavra apartheid chegou às ruas de Havana. Talvez tenha sido difundida pelos corajosos blogueiros que desenham pátios virtuais de debates num país acostumado há meio século a ouvir apenas as vozes de Fidel Castro e seus bonecos de ventríloquo do partido comunista. O portal desdecuba.com abriga a revista web Contodos e uma série de blogs pessoais, dos editores da revista, que residem na ilha e se apresentam com seus nomes próprios. Entre eles, a blogueira célebre é Yoani Sánchez, que ganhou o prêmio espanhol Ortega y Gasset de jornalismo digital mas foi impedida de viajar para recebê-lo.Fidel Castro, pela primeira vez na história, referiu-se a um dissidente ao acusar Yoani, no prefácio de um livro, de “jogar água no moinho do imperialismo”. Uma resposta desmoralizante saiu no blog do jornalista Reinaldo Escobar, da equipe da Contodos. Ele escreveu: “A responsabilidade que implica receber um prêmio nunca será comparável à de outorgá-lo e Yoani, ao menos, nunca colocou uma condecoração no peito de nenhum corrupto, traidor, ditador ou assassino”. E concluiu: “Faço esse esclarecimento porque recordo perfeitamente que foi o autor dessas reprimendas quem colocou (ou mandou colocar) a Ordem de José Martí nas mais nefastas e imerecedoras figuras possíveis: Leonid Ilich Brejnev, Nicolae Ceausescu, Todor Jukov, Gustav Husak, Janos Kadar, Mengistu Haile Mariam, Robert Mugabe, Heng Samrin, Erich Honecker e outros que esqueci”.

A crítica não está apenas nos novos blogs, mas nas ruas, nas conversas cotidianas, e naquilo que dizem os cubanos que, por força da função, estão autorizados a falar com estrangeiros. A reforma da previdência, anunciada numa primeira página de uma edição de julho do Granma, o jornal do partido único, elevará a idade de aposentadoria. Na justificativa oficial, Cuba acompanha as tendências mundiais, que decorrem da dinâmica de envelhecimento da população. “Passamos décadas dizendo que não reproduziríamos as reformas previdenciárias dos outros países. Agora, fazemos exatamente isso. É como tudo mais: perdemos meio século falando mal dos outros e ficamos para trás. Aqui não se produz nada, só se fala.” O motorista de táxi, que batizo Pérez, opera nos circuitos de hotéis e tem algum acesso ao CUC. Não é, nem de longe, um dissidente. Mas ele aponta os campos abandonados do interior, onde se cultivava cana antes do colapso da indústria açucareira cubana, e ironiza a “reforma agrária” anunciada junto com as mudanças na previdência. “As pessoas se mudaram para as cidades. Raúl Castro imagina que alguém voltará para o campo para cultivar as terras ociosas, onde não há nem luz elétrica?”

“Cuba é o país da propina.” A definição, do guia Rodolfo, outro nome fictício, não tem nenhuma intenção crítica. Rodolfo conduz passeios de jet-ski na laguna de Varadero e tudo que quer é a gorjeta do grupo de turistas ao final do passeio, na hora em que, literalmente, ele passa o boné. A “propina” é a renda verdadeira, em pesos convertibles, de todos os que trabalham num setor turístico em plena expansão. Engenheiros, historiadores, enfermeiras, psicólogas, professores - todos que podem trocam suas profissões por um lugar qualquer, de motorista, guia ou camareira, no almejado setor turístico. Mas não basta querer: é preciso ter contatos. A conquista de um emprego na esfera do CUC depende de indicações políticas diretas ou indiretas, não de qualificações. O preço real de todos os serviços nessa esfera abrange a onipresente e quase inevitável propina.

Os cubanos ganham a vida depois do trabalho ou nos interstícios do trabalho. É a hora da propina, do bico ilegal em pesos convertibles, do desvio de charutos para o mercado clandestino das ruas. O trabalho não tem valor. Estudar não alarga horizontes. São essas as lições ensinadas todos os dias pela economia política da crise do socialismo.

Rodolfo, como tantos guias, ecoa ritualmente, por costume e inércia, fragmentos de uma cínica propaganda oficial. “Vocês não verão crianças descalças em Cuba.” Não as há, de fato, mas o subsídio governamental ao calçado infantil acabou para sempre há 18 anos. As crianças não andam descalças pois seus pais gastam o que não têm para calçá-las. Tênis e sapatos custam parcela maior dos salários do “cubano comum” que de um brasileiro pobre. “Aqui em Cuba, a escola é obrigatória. Nenhum pai pode deixar seu filho fora da escola.” No Brasil é igual, retruco, para espanto genuíno de Rodolfo, que “aprendeu” na cartilha midiática do regime que fora de Cuba imperam o analfabetismo, a miséria e a fome. “Todos têm acesso a hospitais e médicos gratuitos em Cuba.” Depois da declamação habitual, vêm os detalhes. Os serviços de excelência não são para “cubanos comuns”, mas para estrangeiros e para os círculos da burocracia comunista. A saúde popular cubana é um SUS em miniatura, com sua litania de equipamentos obsoletos, carência de leitos e filas intermináveis para consultas e operações. O agravante recente é a carência de médicos, que saem em missões de política externa na Venezuela e na Nicarágua. “Mas não podemos reclamar, pois é tudo de graça...” No Brasil, reclamamos.

Num país que criminaliza o intercâmbio de informação, proliferam os mitos conspiratórios. Camilo Cienfuegos, camarada de Fidel na Sierra Maestra, morreu num misterioso acidente aéreo em outubro de 1959, quando retornava de Camaguey, onde cumpriu a dolorosa missão de prender seu amigo revolucionário Hubert Matos, o comandante rebelde acusado de traição. Os destroços do avião jamais foram encontrados. A versão de que Fidel tramou a morte de Camilo, apenas uma hipótese histórica, circula como verdade indiscutível entre os “cubanos comuns”. Camilo é como quer ser chamado um estudante da Universidade de Havana que me convidou a pagar-lhe um “trago do Che” e, prudentemente, indicou o caminho do bar caminhando meia quadra à frente. Diante da curiosa mistura de cuba libre, mel e hortelã que serviria para amenizar a asma, ele identificou no episódio o início da degeneração dos castristas. “Aqui, todos trabalhamos compulsoriamente para Fidel.”

Nem tudo é ingenuidade. Encontra-se, entre os “cubanos comuns’, uma intuição política aguçada, que se manifesta especialmente quando se abordam as relações com os EUA. O bloqueio econômico americano funciona como álibi ideal para a ditadura dos Castros, explicam-me em encontros separados Camilo, Juan e Clara. O levantamento do bloqueio cancelaria o núcleo da argumentação governamental. Barack Obama fará isso? - indaga-me Camilo.

Internet, em Cuba, só em hotéis e lan houses. Uma hora custa seis CUCs. A imensa maioria dos cubanos nunca navegou na rede e poucos sabem da existência dos blogueiros independentes. Todos sabem da história de Guillermo Rigondeaux e Erislandy Lara, narrada de acordo com a versão do regime, pelo Granma, junto com uma profusão de elogios ao governo brasileiro, que os capturou e deportou. “Lula é amigo de Fidel”, explicam os “cubanos comuns”, que continuam a enxergar os boxeadores como heróis nacionais e não escondem o desprezo pelo ato de covardia de Tarso Genro e Lula. O que eles não sabem, pois o Granma não informou, é que Lara fugiu de Cuba há semanas, numa lancha rápida contratada por promotores esportivos alemães.

Sair de Cuba pode ser uma aventura mesmo para turistas. Há um novo golpe na praça, aplicado pelos oficiais de imigração, preferencialmente contra idosos, no aeroporto José Martí. Um funcionário que verifica documentos subtrai o visto de entrada. O funcionário seguinte requisita o visto, constata o seu “extravio” e anuncia que, nessas condições, “é impossível sair de Cuba”. Seguem-se visitas estéreis a oficiais fardados e sugestões para que a vítima “procure melhor” o papelucho amarelo na carteira, onde repousa um tesouro em euros ou dólares. A tensão é mantida até depois da última chamada para embarque. Se o turista não entender a mensagem, o visto sumido acaba reaparecendo. Ninguém quer provocar incidentes diplomáticos. Cuba é só o país da “propina”.

por Demétrio Magnoli, sociólogo e doutor em Geografia Humana pela USP.

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