Os atos cínicos que se tornaram frequentes em nossos Legislativos, Executivos, Judiciários têm como base o sequestro da igualdade cidadã. Quando a discriminação de pessoas e de cargos é instituída numa república democrática, essa última deixa de ser digna até mesmo do próprio nome.
Espinosa, filósofo admirador de Maquiavel, forneceu as bases modernas da vida democrática. Naquele regime, "nenhum indivíduo transfere seu direito natural para um outro indivíduo (em proveito do qual, desde então, ele aceitaria não mais ser consultado). Ele o transfere para o todo da sociedade em que se integra; os indivíduos permanecem, deste modo, todos iguais, como antes, no estado de natureza" ("Tratado Teológico Político"). Desde então, as lutas dos povos livres definiram, enquanto conquista inalienável, o direito à igualdade.
O Brasil, após 500 anos, dificilmente pode ser visto como uma república democrática. Aqui as oligarquias antigas e recentes assaltam o poder público, sugam impostos e riquezas. Acostumadas a se nutrir do esforço alheio, elas agarram privilégios, vilipendiam os preceitos da justiça e das regras cidadãs. Alguns exemplos bastam: em data recente, parlamentares instituíram no Congresso o nepotismo oficial, integrantes do Executivo quebram regras e leis, sem vislumbre de punição, magistrados substituem a toga pelo banco dos réus e são apoiados de modo corporativo.
O último atentado ao nosso direito público está sendo discutido no Parlamento. Talvez seja ele o roubo pior e mais profundo, na incessante busca de se abolir a igualdade. Trata-se do "foro privilegiado" dos mandatários, algo que vai além das prerrogativas inerentes aos cargos. No efetivo, temos aí a proposta de um salvo-conduto para os administradores ímprobos. São tantos corruptos no país inteiro que o STF, mesmo multiplicado por mil, não será bastante para os julgar com rigor.
No pretérito, diz o padre Vieira, "os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois... chamavam-se latrones. A licença política proposta no Parlamento amplia o guarda-chuva protetor da exceção: dos príncipes aos parlamentares, como não poderia deixar de ser numa falsa república. Políticos afoitos dizem não permitir que um juiz togado julgue "alguém que recebeu milhões de votos". Isso sacraliza a tirania. Usando esse critério, Hitler não foi julgado. O mesmo diga-se de Augusto Pinochet e de Fernando Collor.
Roubar dinheiro público é hediondo. Pior é subtrair direitos coletivos, atribuindo-os apenas a uma casta que parasita os governantes. A tentativa de roubo dos nossos direitos, a busca de privilégios corruptos, deve ser barrada por nós. Enquanto isso, é bom espalhar o "Sermão do Bom Ladrão", do padre Antônio Vieira. Larápios devem receber a punição. Mas, adianta o padre, "haverá, porém, algum político tão especulativo que a queira limitar a certo gênero de sujeitos, e que funde as exceções...". Os desonestos dizem que em pessoas "de inferior condição será bem que se executem estes e semelhantes rigores, e não em outras de diferente suposição".
Foro privilegiado é negócio oligárquico ou atributo de monarquias aristocráticas. De qualquer modo, é tirania em estado puro. Mandemos aos congressistas, por telegrama, fax, e-mail ou carta simples, a frase de Vieira: "Em matéria de furtar não há exceção de pessoas, e quem se abateu a tais vilezas perdeu todos os foros".
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