Nos primeiros anos da era Lula, não faltaram motivos para a imprensa temer por sua liberdade. Desde a malfadada tentativa de criar um conselho federal e conselhos regionais para 'fiscalizar' a atividade jornalística à tentativa, igualmente abandonada, de expulsar o correspondente estrangeiro que escrevera sobre o presidente e a bebida - para citar os exemplos mais escabrosos -, o governo emitiu sucessivos sinais de estar interessado em intimidar e, no limite, manietar os meios de comunicação.
Em cada caso, a pronta reação da sociedade e do conjunto dos órgãos de mídia fez ver ao Planalto que o Brasil havia amadurecido o suficiente para não se intimidar diante de quaisquer ameaças dos poderosos de turno ao fundamento constitucional que, acima de todos os outros, distingue o sistema democrático dos regimes de força. Hoje em dia, escolado, o máximo que Lula se permite são eventuais diatribes contra tópicos do noticiário. Ficando nisso, o essencial está preservado.
Ou assim parecia, antes que as baldadas ameaças do Executivo cedessem lugar a um perigo ainda maior, por vir de onde tem vindo - o Judiciário. Pelo País afora, juízes que parecem ter perdido a noção do valor concreto das liberdades públicas vêm tomando decisões francamente incompatíveis com o exercício do direito de informar e ser informado, como se este não precedesse todos os demais na hierarquia jurídico-legal das democracias. Tais decisões nem sempre repercutem com a devida intensidade por afetar pequenas empresas jornalísticas a distância dos principais centros metropolitanos. Nem por isso se deve desconsiderar o seu potencial de gerar perniciosos efeitos cumulativos, fomentando, no limite, uma cultura liberticida. O fato de se tratar de sentenças de primeira instância, passíveis de revogação em escalões superiores, não retira a gravidade da ameaça. Seja porque produzem conseqüências objetivas desde o primeiro momento, seja porque obrigam os atingidos a onerosas e demoradas contestações.
Agora, enfim, a opinião pública nacional tem diante de si atos do Ministério Público e da magistratura que talvez só se expliquem por uma visão distorcida do trabalho da imprensa e das garantias constitucionais que o protegem. Estão aí as multas impostas por juízes eleitorais a um jornal e a uma revista - a Folha de S.Paulo e a Veja São Paulo - por terem publicado entrevistas com a pré-candidata Marta Suplicy, que configurariam propaganda antecipada.
Significativamente, uma ação similar contra o Estado, por uma entrevista com o prefeito Gilberto Kassab, foi arquivada pelo juiz eleitoral Antonio Martin Vargas. Mas o que literalmente passou do limite foi a liminar do juiz substituto Ricardo Geraldo Rezende Silveira, da 10ª Vara Federal Cível de São Paulo, proibindo o Jornal da Tarde e O Estado de S. Paulo de publicar uma reportagem sobre presumíveis irregularidades no Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), sob investigação do Tribunal de Contas da União.
A censura prévia - não há outro termo para a decisão - evoca os "anos de chumbo" da ditadura militar, quando a imprensa era proibida de publicar o que não interessasse ao regime. Pior, afronta a Constituição que não só veda expressamente a censura à imprensa, como estipula que nenhuma lei poderá 'constituir embaraço à plena liberdade de informação jornalística'. Ao conceder a liminar pedida pelo Cremesp, o juiz intimou o Grupo Estado a 'prestar esclarecimentos' em 72 horas. 'Esclarecimentos sobre o quê?', indignou-se o jurista Dalmo Dallari, da USP. 'Sobre o que vai publicar? Sobre a intenção? Isso é censura.' Antes da decisão, o presidente do Cremesp, Henrique Carlos Gonçalves, advertiu que processaria quem divulgasse o que entende ser uma 'difamação'. Está no seu direito. 'O abuso (jornalístico) é punido a posteriori, jamais previamente', atesta o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto. Espanta que a esta altura da história brasileira ainda seja necessário chamar a atenção para essa verdade elementar, consagrada nas leis e na jurisprudência.
Ou para a amarga observação do presidente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI), Maurício Azedo, segundo o qual 'o grande inimigo da imprensa hoje é o Poder Judiciário'.
do Editorial do Estado de São Paulo, em 26/08/2008
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