No emaranhado do debate político atual sobre as questões fundiárias, fica muitas vezes difícil discernir o que está verdadeiramente em jogo, tal é o afã de alguns em ocultar a realidade. A percepção, de tão afastada desta, pode vir a fabular um mundo em que o País seria um imenso latifúndio, ocupado por proprietários inescrupulosos. Cria-se, assim, um novo mundo particularmente propício à fragilização da propriedade privada, onde os títulos não valem mais e a própria Constituição é rasgada.
Alguns poucos, com projetos políticos próprios, travestidos da bandeira de uma suposta “justiça social”, se arvoram em intérpretes da Lei Maior, como se o Poder Judiciário e o Supremo Tribunal Federal não devessem ser respeitados. Assim, a propriedade entra num ciclo perverso de relativização, no qual questões indígenas, sociais e outras ganham a cena principal. Elas são freqüentemente instrumentalizadas por ditos movimentos sociais, verdadeiras organizações políticas que têm como objetivo banir a economia de mercado e o Estado de Direito.
Vejamos os números da distribuição agrária brasileira, referentes a 2007. As culturas temporárias, de ciclo anual - feijão, milho, soja, trigo, arroz e algodão, por exemplo -, ocupam 55 milhões de hectares, perfazendo 6,4% do total. As culturas permanentes, de ciclo mais longo - café, cítricos e frutíferos -, 17 milhões de hectares, 2% do total. As florestas plantadas constituem 5 milhões de hectares, 0,6%. As três, juntas, somam 77 milhões de hectares, ou seja, 9% do total.
Os assentamentos rurais, por sua vez, perfazem sozinhos - repito: sozinhos! - 77 milhões de hectares, ou seja, os mesmos 9% do total. A coincidência parece cabalística, mas é a pura realidade. Atentem para o fato central: os assentamentos equivalem a toda a área de culturas temporárias, permanentes e de florestas, no Brasil. E, no entanto, estas são objeto de invasões constantes, como se o País devesse tornar-se um grande assentamento.
A propriedade privada rural, pequena, média e grande, produz a cesta básica do brasileiro, sendo a fonte de fatia expressiva das exportações brasileiras, gerando o superávit da balança comercial e, sobretudo, empregos, salário, renda e investimentos. Ela se constitui num dos setores mais dinâmicos da economia nacional e, contudo, é objeto de questionamentos constantes, vivendo de insegurança jurídica, como se fosse a responsável por todos os males do campo brasileiro, como se aquilo que comêssemos não fosse objeto do seu trabalho.
Os assentamentos, por sua vez, são de produtividade desconhecida, estudiosos não podem ir lá dentro fazer uma pesquisa isenta, o controle político é total e se encontram numa situação de dependência do governo. Vivem de cestas básicas e não são emancipados - e a emancipação é o que poderia tornar os assentados verdadeiros proprietários, senhores do seu nariz, comprando e vendendo, sem se subordinarem a organizações políticas que os controlam e dizem representá-los. Recursos públicos significativos são canalizados para esses assentamentos e para a reprodução financeira dessas organizações políticas ditas movimentos sociais. Todos vivem do dinheiro do contribuinte!
Vejam a questão das florestas plantadas, fundamentalmente eucaliptos e pinus. Elas correspondem a meros 0,6%, 5 milhões de hectares, e são, todavia, apresentadas como as grandes vilãs do meio ambiente, sendo destruídas, em invasões, com requintes de violência. Os produtos florestais respondem por 15,1% das exportações do agronegócio, ocupando a terceira posição depois do complexo soja e das carnes. A produtividade e o ganho nacional são imensos num setor que se deve defender de invasões que ameaçam a sua existência. Se quiséssemos, ainda, fazer outra comparação, assinalaríamos que as áreas de conservação federal e estaduais ocupam 176 milhões de hectares, isto é, 20,7% do total.
Tornou-se moda dizer que as áreas indígenas são insuficientes, havendo movimentos para ampliá-las constantemente, como se o limite fosse todo o território nacional. Atualmente, elas ocupam 107 milhões de hectares, mais, portanto, do que toda a área de lavouras temporárias, permanentes e de florestas. Sozinhas, elas englobam boa parte do território, equivalente a vários países europeus juntos, para uma pequena população. Dizer que os indígenas não possuem territórios suficientes é um evidente contra-senso, a não ser que o projeto político em questão consista em não considerá-los brasileiros, formando diferentes “nações” que se contraporiam à Nação brasileira. Em todo caso, já teriam uma imensa área. Faltaria somente a demarcação contínua!
Para se ter uma idéia mais precisa do que esta área significa, todas as áreas de pastagem, que respondem pela carne brasileira, principalmente bovina, correspondem a 172 milhões de hectares, 20,2 % do total. De lá provêm as carnes, itens essenciais da alimentação dos brasileiros. Na pauta do agronegócio, as carnes ocupam a segunda posição, com 19,3% do total exportado. Terras do governo e de outros usos, por sua vez, constituem 171 milhões de hectares, isto é, 20,1% do total. Praticamente se equivalem, com a diferença de que ao agronegócio, no caso, a pecuária, seria atribuída a responsabilidade de todos os males da sociedade brasileira!
A despeito do que tem sido dito, a extrema competitividade do agronegócio não se deve ao aumento significativo das terras plantadas e cultivadas, mas a um aumento estupendo da produtividade, graças à pesquisa e à incorporação de novas tecnologias. Por exemplo, a área de grãos cresceu 21%, alcançando 46,7 milhões de hectares, de 1991-1992 a 2007-2008, enquanto a produtividade, no mesmo período, foi de 104%. Eis os números que correspondem à realidade e, se mais bem conhecidos, fariam os cidadãos brasileiros se tornarem mais imunes aos cantos de sereia dos que querem supostamente abolir o latifúndio. Aliás, qual?
por Dennis Rosenfeld no Estado de São Paulo, em 26/05/2008
Grande foi a repercussão de meu último artigo, Qual latifúndio? (26/5) [reportagem acima], por fornecer números que obrigam a uma releitura da questão fundiária no Brasil. Alguns leitores me solicitaram que expusesse as fontes utilizadas, pois, por economia de espaço, não o tinha feito. Outros me pediram dados adicionais sobre a população indígena, o que faço a seguir. Outros ainda ficaram indignados com os números, ou seja, com a realidade, por esta contrariar suas convicções. Não se pode brigar com os números. O peso da ideologia é tão grande que a realidade fica velada, mostrando tão-só, refratariamente, alguns dos seus contornos. Com os números, um enfoque mais verdadeiro se torna possível.
A área total do Brasil é de 8.514.215,3 km2, correspondente a 851.421.530 hectares, conforme dados do IBGE relativos ao Censo Demográfico de 2000. Não estão listados a seguir as cidades, os lagos, as estradas, as unidades de conservação ambiental, federal e estaduais, as terras inexploradas e outros usos. O total dos números agrários abaixo citados corresponde a 437.683.885 hectares, com variações pequenas, segundo a fonte escolhida.
Quanto à área dos estabelecimentos agropecuários por utilização das terras, usei a Tabela 559, do IBGE, relativa ao Censo Agropecuário de 2006, realizado em 2007. Eis os números precisos da utilização das terras: lavouras permanentes, 18.805.587 hectares; lavouras temporárias, 57.891.737 hectares; e pastagens, 172.333.073 hectares.
Quanto à área de florestas plantadas, utilizei os dados da Associação Brasileira de Produtores de Florestas Plantadas (Abraf) extraídos do seu Anuário Estatístico 2008, relativos ao ano-base de 2007: 5.560.203 hectares.
Quanto aos dados relativos aos assentamentos, utilizei o Incra como fonte. Eis os números, tendo como base 2007. Total da área: 77.421.282 hectares, correspondentes a 7.945 projetos de assentamentos.Se somarmos o total das áreas de lavoura permanente, de lavoura temporária e de florestas plantadas, chegaremos ao número de 82.257.527, muito próximo da área do total de assentamentos, 77.421.282. No artigo anterior, os números foram arredondados, tendo utilizado uma tabela preliminar. Agora estão atualizados.
Quanto às áreas indígenas, utilizei a Funai como fonte. Eis os números correspondentes a 2006: 105.672.003 hectares. Assim divididos: regularizadas, 92.219.200; homologadas, 3.599.921; declaradas, 8.101.306; e delimitadas, 1.751.576. O IBGE trabalha com o número de 106.359.281 hectares, correspondente a 12,5% do território nacional. O Serviço Florestal Brasileiro fornece outro dado relativo a julho de 2007, de 109.133.000 hectares de terras indígenas, tratando-se, portanto, de um número mais atualizado. Teria havido um acréscimo, em relação ao número da Funai, de 3.460.997 hectares.
Quanto à população indígena, os números são díspares, variando conforme a fonte e as estimativas. Segundo a Funai, o Brasil contaria com uma população indígena de 358 mil pessoas, conforme informava o seu site há 20 dias. Ela fornece, agora, para junho de 2008, outra cifra. Cito: "Hoje, no Brasil, vivem cerca de 460 mil índios, distribuídos entre 225 sociedades indígenas, que perfazem cerca de 0,25% da população brasileira. Cabe esclarecer que este dado populacional considera tão-somente aqueles indígenas que vivem em aldeias, havendo estimativas de que, além destes, há entre 100 e 190 mil vivendo fora das terras indígenas, inclusive em áreas urbanas. Há também 63 referências de índios ainda não-contatados, além de existirem grupos que estão requerendo o reconhecimento de sua condição indígena junto ao órgão federal indigenista."
Por sua vez, o ex-presidente da Funai Mércio Pereira Gomes estimou, em abril de 2006, a população indígena em 450 mil pessoas. Segundo o Instituto Socioambiental, partindo do princípio de que não existe um censo indígena no Brasil, os números variam entre 350 mil e mais de 700 mil, conforme as fontes utilizadas, o que corresponderia a entre 0,2% e 0,4% da população brasileira.
O IBGE, segundo o estudo Tendências Demográficas: uma Análise dos Indígenas com Base nos Resultados da Amostra dos Censos Demográficos 1991 e 2000, divulgado em 2005, com números estimados de 2000, trabalha com os seguintes números: no total, são 734.127 índios - divididos entre 383.298 de população urbana e 350.829 de população rural. Logo, para efeitos de demarcação de terras, valeria o número de 350.829 de população rural, aí incluídos os que vivem em zonas rurais não-indígenas. Os demais já são índios urbanos, aculturados, que necessitariam uma política específica de integração, que não é a de demarcação de terras. Ademais, ainda segundo o IBGE, as maiores taxas de crescimento se registraram em áreas urbanas, sobretudo devidas a processos de auto-identificação. Ou seja, trata-se de um problema cultural relativo à identificação desse grupo étnico, desvinculado também de questões de ordem fundiária. O IBGE destaca ainda o fenômeno da imigração de índios da Bolívia, do Equador, do Paraguai e do Peru. Neste caso, o Brasil estaria internalizando um problema de outros países latino-americanos.
Por último, a estimativa de áreas ditas quilombolas no Brasil, segundo os pleitos em curso, seria de 25 milhões de hectares, segundo fontes do Incra utilizadas pelo Estado de São Paulo, em 12 de agosto de 2007. Esses números foram citados em audiência pública da Comissão de Direitos Humanos e de Minorias da Câmara dos Deputados, em 11 de setembro de 2007, com a presença dos presidentes da Fundação Palmares e do Incra. Não houve contestação. Para se ter uma idéia do que isso representa, a área do Estado de São Paulo é de 24,8 milhões de hectares. Ainda segundo outras estimativas, este número estaria subestimado, podendo alcançar uma cifra bem maior.
por Dennis Rosenfeld, no Estado de São Paulo, em 09/06/2008
Nenhum comentário:
Postar um comentário