segunda-feira, 2 de junho de 2008

A Servidão Voluntária

Aqueles que desistiriam da liberdade essencial para comprar um pouco de segurança temporária não merecem nem liberdade, nem segurança.

Benjamin Franklin

Em 1548, com apenas 18 anos de idade, o francês Étienne de La Boétie escreveu seu Discurso Sobre a Servidão Voluntária, um texto instigante e corajoso, no qual sustenta a tese de que os escravos são servos por opção. La Boétie, que foi amigo de Montaigne, foi um dos primeiros a perceber que os governados eram sempre maioria em relação aos governantes, e que, por conta disso, algum grau de consentimento deveria existir para manter a situação de servidão. O seu texto pode ser entendido como um ataque à monarquia, devido ao contexto de sua época, mas não somente isso. O próprio autor reconhece que o tirano pode ser eleito também, mudando apenas a forma de se chegar ao poder, e não seu abuso. O livro, portanto, é uma leitura essencial nos dias atuais também, onde governos democráticos avançam sobre as liberdades mais básicas dos indivíduos.
Para La Boétie, “é o povo que se sujeita, que se corta a garganta, que, podendo escolher entre ser subjugado ou ser livre, abandona a liberdade e toma o jugo, que consente no mal, ou antes, o persegue”. O pensador Edmund Burke diria algo semelhante depois, ao constatar que “tudo aquilo que é necessário para o triunfo do mal é que os homens bons nada façam”. La Boétie via no direito natural do homem aquilo que ele tem de mais caro, e compreendia que “não nascemos apenas na posse de nossa liberdade, mas com a incumbência de defendê-la”. No entanto, ele constatou que o povo estava quase sempre inclinado a abandonar esse direito, em troca de alguma sensação de segurança. O tirano, então, chega ao poder, seja pela conquista ou pelos votos. Mas La Boétie questiona: “Como tem algum poder sobre vós, senão por vós? Como ousaria atacar-vos, se não estivesse em conluio convosco?” Bastaria que o próprio povo fosse resoluto em não servir mais, para ter sua liberdade. A escravidão acaba exigindo a sanção da vítima.
O que então explicaria essa servidão consentida? Para La Boétie, “todos os homens, enquanto têm qualquer coisa de homem, antes de se deixarem sujeitar, é preciso, de duas, uma: que sejam forçados ou enganados”. Ele parte então para a tese de que, no início, o homem serve vencido pela força, mas que depois serve voluntariamente, enquanto seus antecessores haviam feito por opressão. Sem terem experimentado a liberdade, esses homens acabam escravos pelo costume. La Boétie, antecipando David Hume e Franz Oppenheimer, conclui: “É assim que os homens nascidos sob o jugo, depois alimentados e educados na servidão, sem olhar para a frente, contentam-se em viver como nasceram, sem pensar em ter outro bem, nem outro direito senão o que encontraram, tomando como natural sua condição de nascença”. Primeiro, o poder é conquistado na força; depois, o costume permite um ar de legitimidade, mantido pela ignorância e covardia dos escravos.
A revolta contra essa tirania nem sempre é amiga verdadeira da liberdade. Para La Boétie, os vários atentados realizados contra imperadores romanos, por exemplo, “não passaram de conspirações de pessoas ambiciosas, cujos inconvenientes não se deve lamentar, pois se perceber que desejavam, não eliminar, mas remover a coroa, pretendendo banir o tirano e reter a tirania”. Não foram poucos os casos na história de luta contra uma tirania estabelecida por outra tirania, muitas vezes até mais cruel. Os bolcheviques são um claro exemplo disso, mas nem de perto o único. Até a Revolução Francesa usou o nome da liberdade apenas para entregar Robespierre e seu Grande Terror em troca. No Brasil mesmo, tivemos comunistas lutando contra uma ditadura, mas desejando no fundo instaurar outra bem mais perversa, como aquela existente em Cuba.
Quando se entende que o tirano precisa do consentimento do povo, descobre-se porque todo tirano usa o ardil de embrutecer os súditos e atacar os homens de valor. A doutrinação é fundamental para os tiranos nesse aspecto. O “pão e circo” também são úteis, para desviar as atenções. La Boétie diz: “Os teatros, jogos, farsas, espetáculos, lutas de gladiadores, animais estranhos, medalhas, quadros e outros tipos de drogas, eram para os povos antigos os atrativos da servidão, o preço da liberdade, as ferramentas da tirania”. E convenhamos: como o povo se vende por pouco! Se antes era assim, nada mudou na essência, apenas na forma. O povo escravo vibra com o time campeão do mundo, trocando liberdade por um tolo “orgulho nacional”. O escravo esquece que o governo lhe toma metade dos frutos de seu trabalho, preferindo relaxar no carnaval. “Assim, os povos, enlouquecidos, achavam belos esses passatempos, entretidos por um vão prazer, que lhes passava diante dos olhos, e acostumavam-se a servir como tolos”, lamenta o autor.
As migalhas oferecidas em troca da liberdade não eram apenas jogos e distração, mas literalmente migalhas: “Os tiranos distribuíam um quarto de trigo... e então dava pena ouvir gritar: Viva o rei!” Há tanta diferença assim para um Bolsa-Família, programa assistencialista que, na verdade, são esmolas em troca de voto? La Boétie percebeu que o governo, sem produzir a riqueza, precisa tirar antes de dar: “Os tolos não percebiam que nada mais faziam senão recobrar uma parte do que lhes pertencia, e que mesmo o que recobravam, o tirano não lhes podia ter dado, se antes não o tivesse tirado deles próprios”. Não obstante, o populismo sempre rendeu poder e devoção, sentimento que todos os tiranos buscam despertar em seus súditos. La Boétie lembra que mesmo tiranos que destruíram totalmente a liberdade do povo foram homenageados pelas próprias vítimas, muitas vezes vistos como “Pai do Povo”. Que tipo de covardia faz alguém amar o próprio algoz?
Além das distrações e das migalhas, como o restaurante popular atualmente, os tiranos precisam oferecer uma rede de favores, criando cargos para sustentar a tirania com mais aliados. A lista de oportunistas batendo à porta do governo para trocar liberdade por verbas seria infindável. Desde artistas engajados, intelectuais, funcionários públicos, invasores de propriedade, até líderes do “terceiro setor” ou mesmo empresários, todos em busca de uma teta estatal para mamar. Os tiranos compram assim o apoio à tirania. “Em suma”, conclui La Boétie, “que se consigam, pelos favores ou sub-favores, que se encontrem, enfim, quase tantas pessoas às quais a tirania pareça lucrativa, como aqueles a quem a liberdade seria agradável”.
Essa troca da liberdade por favores seria trágica por si só, pelo valor intrínseco que tem a liberdade. Mas, não obstante, La Boétie questiona que tipo de vida esses “escravos voluntários” levam, concluindo que não pode ser uma vida feliz. Ele pergunta: “Qual condição é mais miserável do que viver assim, sem nada ter de seu, recebendo de outrem satisfação, liberdade, corpo e vida?” Além disso, La Boétie afirma que a amizade verdadeira é impossível nesse contexto de tirania. Ela, afinal, “só se encontra entre pessoas de bem e só existe por mútua estima; mantém-se não tanto por benefícios, senão por uma vida boa”. E acrescenta: “O que torna um amigo seguro do outro é o conhecimento que tem de sua integridade”, lembrando que “entre os maus, quando se reúnem, há uma conspiração, não mais uma companhia; não se amam mais uns aos outros, mas se temem; não são mais amigos, mas cúmplices”. Alguém poderia ter alguma dúvida da verdade dessas palavras observando o comportamento dos aliados do governo brasileiro atual? São todos cúmplices de um projeto de poder; não amigos.
Em resumo, as palavras escritas por um jovem culto de 18 anos na França, há quase cinco séculos atrás, ainda ecoam como verdade nos dias atuais. O povo parece não aprender a lição, construindo sua própria prisão, vendendo a corda usada para seu enforcamento. Nasce escravo, vive na ignorância, e não ousa desafiar seu senhor, questionando sua legitimidade. Aceita passivamente seus grilhões, que até ajuda a colocar. Enquanto os animais na natureza lutam desesperadamente contra seu domínio, o homem, justo o animal com maior capacidade de ser livre, acaba se submetendo passivamente à servidão. Enquanto uma grande quantidade de pessoas estiver disposta a sacrificar a liberdade em troca de algumas migalhas e uma falsa sensação de segurança, conviveremos com a escravidão.

por Rodrigo Constantino, em 30/05/2008

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