O governo federal vai mesmo pôr o carro adiante dos bois e formar um fundo soberano, embora faltem as condições de segurança para um empreendimento desse tipo. O Fundo Soberano do Brasil (FSB) terá, segundo o ministro da Fazenda, Guido Mantega, cinco objetivos, não muito claros nem facilmente justificáveis. O primeiro deles será ''apoiar projetos de interesse estratégico do País'', ainda não explicados de forma satisfatória. Já houve menções muito vagas a projetos na África e na América do Sul, mais vinculados, aparentemente, a metas diplomáticas e geopolíticas do que a interesses econômicos bem definidos.
Mas, antes mesmo de um exame das finalidades do fundo, há motivos para dúvidas e receios quando se examinam as condições apontadas pelo ministro como favoráveis à sua constituição. O primeiro grupo de fatores inclui: dívida externa líquida negativa em US$ 15 bilhões; perspectivas de reservas petrolíferas; e forte ingresso de recursos externos.
Para começar, a dívida externa líquida só é negativa em termos abstratos, porque a dívida real não foi paga. É proporcionalmente pequena e deixou de constituir uma grande preocupação, mas não foi eliminada. Se os compromissos não forem liquidados e o nível de reservas baixar, a situação mudará. A referência às ''perspectivas'' de reservas petrolíferas, por sua vez, não vale uma discussão. Grandes produtores de petróleo têm fundos soberanos, mas nenhum governo constituiu um fundo desse tipo baseado em expectativas de depósitos ainda não mensurados. Quanto ao fluxo de recursos externos, pode facilmente minguar ou inverter-se.
O ministro menciona, em seguida, uma ''política fiscal consistente'', com resultado nominal superavitário. Mas o superávit nominal só ocorreu no primeiro trimestre e o resultado previsto para o ano é um buraco nas contas públicas, pois só uma parte dos juros será paga.
O terceiro ponto favorável, segundo Mantega, é o mais concreto: o País acaba de ganhar o primeiro grau de investimento, atribuído pela agência Standard & Poor''s (S&P). Mas a classificação pode mudar, para melhor ou para pior. E o quadro fiscal, com uma relação ainda alta entre a dívida pública e o PIB, é a principal fraqueza brasileira, segundo os analistas da S&P e de outras agências de classificação (veja notícia mais abaixo).
Em vez de cuidar desse ponto fraco, o governo vai aproveitar a situação econômica favorável para criar um instrumento de utilidade muito duvidosa e potencialmente muito custoso.
Para alimentar o FSB, o Tesouro deverá comprar dólares. Para isso terá de se endividar, lançando títulos no mercado. Um segundo canal de financiamento será constituído pelo Fundo Fiscal de Investimentos e Estabilização (FFIE). Este segundo fundo, subordinado ao primeiro, terá recursos formados com o ''excedente do superávit primário'' - uma noção um tanto rebarbativa. O superávit primário é o dinheiro posto de lado para o pagamento de juros. Programou-se para este ano um resultado primário equivalente a 3,8% do PIB. O governo central deverá contribuir com 2,2%, ficando o resto a cargo de Estados, municípios e empresas estatais.
Se a arrecadação continuar a crescer, o governo poderá superar a meta fixada para o superávit primário. Daí virá o tal ''excedente''. Mas só haveria sobra fiscal, de fato, se o dinheiro disponível fosse mais que suficiente para pagar todos os compromissos financeiros do exercício. Nesse caso, haveria superávit nominal e o governo disporia, realmente, de um excedente financeiro para aplicar. O ''excedente do superávit primário'' não é propriamente um excedente, assim como o superávit primário não é de fato um superávit fiscal.
O dinheiro recolhido pelo FFIE servirá para aplicação em projetos e para formação de uma reserva anticíclica, acumulada em tempos de prosperidade e gasta em fases de vacas magras. A idéia é em princípio interessante e já foi adotada no Chile. Mas o governo chileno tem sido de fato superavitário. Quanto aos objetivos do FSB, são muito discutíveis. Para que apoiar a internacionalização de empresas brasileiras, se os grupos capazes de investir no exterior já têm bom acesso a financiamento internacional? E quais serão os critérios - é preciso insistir - para definir os tais ''objetivos estratégicos''? Estratégicos para o quê e para quem?
Opinião - Estado de São Paulo - 15/05/2008
Os economistas responsáveis pelo Plano Real criticaram a proposta de criação de um fundo soberano brasileiro, lançado pelo governo Lula este mês: "Isso me lembra muito diversos tipos de feitiçaria que no passado se quis fazer com reservas internacionais", disparou Gustavo Franco, que foi secretário-adjunto de Política Econômica do Ministério da Fazenda no governo Itamar e depois presidente do Banco Central sob FHC.
O economista Edmar Bacha (ex-assessor especial da Fazenda), afirma que o país não tem dinheiro para tanto. "Nós vamos nos endividar para aplicar no fundo, que vai render menos do que vai custar a dívida com a qual vai ser comprado", sustentou.
O ex-ministro da Fazenda Pedro Malan falou das dificuldades inerentes. "A experiência mostra que ele existe em países que têm superávit no balanço de pagamentos em conta corrente, o que não é o caso do Brasil. Existem outras experiências, como a do Chile, que aprendeu ao longo de décadas que, quando tem elevação no preço do cobre, faz um acúmulo e uma tentativa de estabilizar a economia, mas não chega a ser um fundo soberano", defendeu.
O Brasil, no geral, não tem perfil para ter um fundo soberano, na avaliação da diretora de Rating Soberano da agência de classificação de risco de crédito Standard & Poor´s, Lisa Schineller. A executiva também destaca as questões ainda em aberto sobre a atuação do Tesouro Nacional e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) em relação ao fundo.
Em 30 de abril, a S&P elevou a classificação soberana do Brasil para grau de investimento. Em palestra realizada em Nova York pela Câmara de Comércio Brasil-EUA, Lisa observou que o Brasil não opera com superávit fiscal nominal, por exemplo, para que seja criado um fundo soberano de riqueza. "Se o fundo fosse estabelecido depois que Tupi (campo de petróleo) estivesse funcionando, seria uma ótima forma de (criar) poupança para as próximas gerações."Lisa pondera que a criação de um fundo é um fato que ainda teria de ser incorporado às ações de rating da S&P em relação ao País. À platéia de investidores, a analista disse que "ratings vão para cima ou para baixo", em alusão ao fato de que uma classificação de grau de investimento pode voltar a cair ao nível especulativo. "Há passos para cima na escala e também para baixo."
O rating foi elevado, diz Lisa, "pelo comprometimento do governo com políticas pragmáticas". Ela destaca que a trajetória do Brasil rumo ao grau investimento foi "impressionante", uma vez que o País subiu a escala em quatro anos, enquanto México levou sete anos e a India, 16 anos. Para manter a classificação investment grade - Brasil e México são os únicos com este selo na América Latina, pelo critério da S&P -, é preciso manter o comprometimento, avisa.
Lisa destacou que a relação dívida líquida geral do governo/PIB teve redução, mas continua "elevada". "A principal limitação é a política fiscal", afirma. "Apertar a política fiscal e trazer a dívida para baixo seria positivo para o rating", completou.
Política industrial
Com relação à política industrial anunciada oficialmente na segunda-feira, Lisa Schineller destacou que "não dá conselho para países", mas afirmou que a renúncia fiscal anunciada pelo governo pode estimular os investimentos. "No entanto, redução mais rápida da relação dívida/PIB seria outra forma para estimular o ambiente de investimentos", observa. "Ainda queremos ver quais serão os resultados (da política industrial)", completou em Nova York.
Em entrevista após o evento, a executiva comentou que impostos mais baixos no geral, para todos os setores, seria bom para o clima de investimento no País e citou espaço para tal, diante da elevada carga de impostos locais. Schineller ainda chamou atenção para um "desafio" ligado aos anúncios feitos, que é saber se, de fato, foram pegos os setores corretos. "Pode-se cometer erro ao selecionar setores que não vão ser competitivos no fim".
por NALU FERNANDES - Agencia Estado, em 14/05/2008
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