sexta-feira, 2 de maio de 2008

O Poder das Idéias

Atualmente, quando escutamos que alguém é pragmático, isto soa como um elogio. Mas desde quando ser pragmático é uma virtude? O pragmatismo, não custa lembrar, defende que o sentido de tudo está na utilidade, no resultado. O efeito prático das ações é o que importa. Os fins justificam os meios. Os princípios morais cedem lugar ao relativismo moral. O pragmatismo é amoral. Pragmatismo nos remete a algo maquiavélico, lembrando que o filósofo Maquiavel escreveu praticamente um guia de sobrevivência e manutenção do poder para o príncipe. Ele afirmou que “um homem que queira fazer em todas as coisas profissão de bondade deve arruinar-se entre tantos que não são bons”. Além disso, deu recomendações bem pragmáticas ao poderoso, lembrando que o conquistador deve executar as ofensas necessárias de uma só vez, e ganhar a confiança dos súditos através de benefícios feitos pouco a pouco depois. É curioso notar que o adjetivo “maquiavélico” adquiriu conotação negativa, enquanto “pragmatismo” é visto como algo bom.

Esta postura pragmática é contrária àquilo que John Stuart Mill defendeu: “A verdade de uma opinião faz parte de sua utilidade. Se quiséssemos saber se é ou não desejável crer numa proposição, seria possível excluir a consideração sobre ser ou não verdadeira? Na opinião, não dos maus, mas dos melhores, nenhuma crença contrária à verdade pode ser realmente útil”. Ou seja, falar em utilidade dissociada da verdade é oferecer um falso remédio, e quem oferece falso remédio é um falso amigo. O verdadeiro defensor da utilidade é aquele que prega o que entende como verdadeiro, e não o que se encaixa no pragmatismo do momento.

Em O Homem Medíocre, José Ingenieros afirma, logo no começo: “Quando colocamos a proa visionária na direção de uma estrela qualquer e nos voltamos às magnitudes inalcançáveis, no afã de perfeição e rebeldes à mediocridade, levamos dentro de nós, nesta viagem, a força misteriosa de um ideal”. Quem deixa essa força se apagar, ficando simplesmente inerte, não passa “da mais gelada bazófia humana”. Para ele, “o ideal é um gesto do espírito em direção a alguma perfeição”.

Isso não quer dizer, em minha opinião, que seja louvável alguém sonhar qualquer sonho sem os pés no chão. Existem ideais e ideais. O socialismo é uma utopia, e como tal é inexeqüível. Mas, não obstante seus fins serem um pesadelo para todos aqueles que não se vêem como insetos gregários, sua grande falha está também no fato de suas crenças baterem de frente com a natureza humana. Ou seja, os meios pregados pelos socialistas levam inexoravelmente ao terror, miséria e escravidão. O socialismo é um ideal errado e que, além disso, ignora totalmente a realidade. Isso não quer dizer que devemos repudiar qualquer ideal. O liberalismo pode ser visto como um ideal também, no sentido de que defende uma ampla liberdade individual que ainda não existe. No entanto, além de ser um ideal desejável, ele pode ser também factível, pois não entra em confronto com nossa natureza. Pode até ser que em sua forma mais pura, o liberalismo seja um ideal inalcançável, mas pelo menos ele serve como a tal estrela que mostra o caminho a ser seguido. É fundamental não perder isso de vista, em troca das concessões pragmáticas do momento.

Uma vez identificado o ideal a ser seguido, resta questionar por que seria condenável ser “radical” na defesa deste ideal. Uma pensadora que sempre condenou este relativismo foi Ayn Rand, logicamente tachada de “extremista” por seus inimigos. O termo “extremismo”, para começo de conversa, é um termo que não tem significado algum se estiver isolado. O conceito de “extremo” denota uma relação, uma medida, um grau. Logo, parece óbvio que a primeira pergunta a ser feita é: Extremo em relação a que? Responder que é ruim um extremo em relação a qualquer coisa é absurdo, pois extrema saúde e extrema doença seriam então igualmente indesejáveis, extrema inteligência seria tão ruim quanto extrema burrice, e extrema integridade seria tão condenável quanto extrema perfídia. Seria o caso de se perguntar aos ditos “moderados” então: É igualmente indesejável ser extremamente honesto e extremamente desonesto? O “caminho do meio” faz sentido quando se trata da integridade? Quem responde que sim não pode estar do lado dos íntegros.

Outro grande pensador que não aceitou contemporizar com o inimigo foi Ludwig von Mises. Sua vida é a prova disso. Mesmo diante de todas as dificuldades imagináveis, fugindo do regime nazista, da guerra, sem conforto financeiro, Mises jamais aceitou jogar o jogo sujo da política, ceder ao que considerava falso apenas para alívio imediato. Mises acreditava muito no poder das idéias, pois entendia que os governos são sempre frágeis, já que dominados por uma minoria. Mudando as idéias abraçadas pelo povo, governos podem desabar rapidamente. Com esta crença inabalável no poder das idéias, Mises sabia que não poderia compactuar com aquilo que considerava falso. Ele poderia facilmente ter sido mais “flexível”, aceitando algumas concessões à mentalidade dominante da época, e teria tido uma carreira mais tranqüila. Mas não conseguiria dormir com sua consciência limpa dessa maneira, pois saberia que estaria dormindo com o inimigo. Mises não aceitou trocar a dignidade pela reputação, lembrando que dignidade é aquilo que pensamos de nós mesmos, enquanto reputação é o que os outros pensam de nós. Mises não estava em busca de aplausos da platéia, da bajulação dos colegas, do poder político, mas sim da verdade. Contemporizar com o mal apenas para obter mais adeptos é atitude de imorais em busca de rebanho de seguidores. É preciso integridade para enfrentar as adversidades que surgem quando alguém resolve contrariar os poderosos e o consenso do momento. E Mises tinha esta integridade, tanto que no auge de sua crise, disse se arrepender apenas dos momentos em que contemporizou demais, nunca quando foi intransigente.

Ainda dentro da Escola Austríaca, outro que compreendeu a importância da pureza das idéias foi Hayek. Para ele, os liberais devem ser capazes de apelar à imaginação, fazendo a construção de uma sociedade livre ser uma aventura intelectual, uma conquista da coragem. Hayek achava que os intelectuais liberais não deveriam ser demasiadamente práticos e também não deveriam confinar suas idéias àquilo que parecesse politicamente viável no momento. Deveriam, ao contrário, ser homens dispostos a se agarrar aos princípios e lutar por sua total realização, ainda que remota. As concessões práticas devem ser deixadas para os políticos. A batalha pela liberdade não estaria perdida, segundo Hayek, se fosse possível resgatar a crença no poder das idéias. Esta opinião de Hayek influenciou de forma crucial Antony Fisher, que desejava fundar um novo partido político depois de ler O Caminho da Servidão, excelente obra onde Hayek mostra que o aumento do poder político destrói a liberdade. Fisher foi convencido por Hayek a criar um “think tank” em vez de um partido, e assim nasceu o Institute of Economic Affairs, em 1955. As idéias divulgadas pelo instituto foram fundamentais para criar um ambiente favorável às reformas liberais da era Thatcher, anos depois. Sem uma mudança da mentalidade, essas reformas ou não seriam possíveis, ou não seriam sustentáveis.

O poder político é mais frágil do que muitos acreditam. Creio que os próprios governantes sabem disso, e por isso buscam sempre toda forma de controle sobre nossas vidas. Mas no final do dia, eles conseguem se manter no poder somente com o respaldo de boa parte da população, mesmo usando aparatos de coerção. Afinal, os governados são sempre maioria. A manutenção do poder, portanto, depende das idéias disseminadas entre esta maioria. Isto foi verdade até mesmo para os regimes nazista e comunista. Maquiavel também tinha compreendido bem isso. O que precisa mudar são as idéias do povo. Os governantes sabem disso, e costumam encarar a liberdade de expressão com hostilidade. Aquele que ataca o governo deve ser visto como inimigo da pátria, do próprio povo. Há uma propaganda intensa para o culto à presidência, onde o governo é visto como uma espécie de deus. A própria pergunta que me fazem com freqüência, de quando pretendo me candidatar a algum cargo político, denota esta crença. A maioria, atualmente, acredita que o meio da nossa salvação é o meio político. Estão à espera de um messias salvador. Ainda não compreenderam de forma correta o poder das idéias. “Não há nada mais forte que uma idéia cuja hora é chegada”, disse Victor Hugo.



excertos do artigo de Rodrigo Constantino, em 01/05/2008

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