Em 29/09/2008, comemorou-se o centenário da morte de Machado de Assis. A data coincidiu, certamente não por acaso, com a assinatura do novo acordo ortográfico da língua portuguesa, que pretende unificar o idioma falado hoje por cerca de 200 milhões de pessoas em quatro continentes.
Sobre o acordo ortográfico, falarei depois. Por ora, o que me interessa aqui é analisar um pouco mais de perto essa figura ímpar que foi Joaquim Maria Machado de Assis (1839-1908). E traçar um paralelo entre ele e nosso supremo mandatário da nação.
Machado foi o anti-Lula. O que quero dizer com isso? O que qualquer pessoa que conheça razoavelmente bem a biografia do fundador da Academia Brasileira de Letras sabe perfeitamente, mas que quase ninguém, com medo de ofender os cânones politicamente corretos, tem coragem de dizer abertamente: que, nascido num subúrbio carioca, de pai e mãe paupérrimos - ele, pintor de paredes e descendente de escravos; ela, lavadeira e costureira, ambos analfabetos -, e além de tudo mulato, míope, gago e epilético, Machado encarna tudo aquilo que Lula não é, nunca foi e jamais será um dia - um exemplo de superação individual.
Tendo praticamente todas as circunstâncias conspirando contra si, desde a origem humilíssima até a cor da pele - num país em que, é bom lembrar, ainda reinava a escravidão, e que via na brancura da cútis um atestado de superioridade física e mental -, Machado jamais se conformou ao determinismo social de sua época e ao vitimismo fácil que sempre caracterizou certa visão esquerdista. Também, ao contrário do que muitos gostariam hoje, nunca sujeitou sua literatura a um papel racial demagógico - nunca foi, em suma, um "escritor negro". Foi um escritor, pura e simplesmente. O maior da literatura brasileira e um dos maiores da literatura universal, ao lado de Dante, Camões e Cervantes.
E Lula? Bom, acho que não vou precisar lembrar aqui sua origem social. Ela é conhecida de todos, que já ouviram e reouviram, ad nauseam, a história de sua vinda para São Paulo num caminhão pau-de-arara, sua infância pobre e sua mãe "que nasceu analfabeta". Ele, aliás, faz questão de dizer isso sempre que pode, em discursos geralmente recheados de sentimentalismo e erros de português, que não raro levam às lágrimas muitos intelectuais de esquerda. Luiz Inácio, o menino de Garanhuns, interior de Pernambuco, que veio para São Paulo fazer a vida, virou metalúrgico, perdeu um dedo, tornou-se líder sindical, entrou para a política e foi eleito e reeleito Presidente da República... Comovente, não?
Seria, certamente, se não fosse por um detalhe, que geralmente passa despercebido pela legião de admiradores de D. Lula, Primeiro e Único. Ao contrário do autor de Dom Casmurro e de Memórias Póstumas de Brás Cubas, Lula não prosseguiu nos estudos, parando na 4a série primária. Para todos os efeitos, é um semi-letrado, um semi-analfabeto. E, igualmente ao contrário de Machado, ele não o fez não porque não tivesse condições financeiras de correr atrás do tempo perdido e superar essa deficiência, mas por um motivo muito mais simples e inconfessável: porque não quis. Pelo menos desde que largou o macacão de operário e entrou para a política, no final dos anos 70, ele teve tempo e oportunidades de sobra para cursar até uma faculdade, se quisesse. Em vez disso, preferiu a política. E virou presidente da República.
Tamanha é a hegemonia da cantilena politicamente correta nessa e em outras questões que, mesmo alguns críticos mais duros de Lula e do PT hesitam em tocar nesse assunto, para não passarem por "elitistas" e "preconceituosos". Para eles, como para a maioria, Lula pode até ser um bandido e um enrolador, mas sua ignorância seria um pecado menor. Não vêem nada de mais em que as principais atividades intelectuais de Lula sejam os churrascos com os amigos ou os jogos do Corinthians. Ou que Machado apreciasse Beethoven, enquanto Lula gosta de Zezé Di Camargo e Luciano.
As diferenças não páram por aí. A negligência do atual mandatário brasileiro com a própria educação decorre de algo bem mais íntimo e pessoal do que qualquer condição social pregressa: Lula detesta ler. Sua aversão à leitura é notória. Para ele, como confessou certa vez em um evento - em que ironicamente tentava estimular as crianças ao hábito da... leitura! -, ler um livro é algo tão penoso quanto andar de esteira. Seria apenas mais uma curiosidade inofensiva, ou mais uma gafe, se não fosse outro detalhe: não somente ele foge dos livros como o diabo da cruz, como propagandeia e orgulha-se de sua própria ignorância. Na verdade, esta é uma arma que ele utiliza sempre que é conveniente, para rebater qualquer um que critique suas poucas luzes. Basta alguém lembrar esse detalhe que ele, ou algum de seus milhares de assessores gritará, indignado: "é preconsseitú!". Com Lula, a infância pobre e humilde tornou-se um álibi para a ignorância. Esta, por sua vez, foi elevada à condição de verdadeiro culto.
De acordo com essa visão dos petistas, Machado de Assis, certamente, seria um preconceituoso. Pior: ele era parte da "elite branca" (mesmo não sendo da elite, nem branco) que torce o nariz para o presidente-operário por seus erros de português e sua origem nordestina. Sim, porque Machado, diferentemente de Lula, gostava de ler. Mais que isso: ao contrário de nosso presidente, ele procurou contornar as dificuldades da vida, tornando-se um autodidata. E isso sem cotas, nem nada do gênero. Enfim, ele tinha tudo para ser um ignorante, ou, se vivesse hoje, um petista. Mas não cedeu ao apedeutismo. Mesmo não sendo político - ou talvez por isso mesmo -, não sucumbiu à preguiça intelectual, nem jamais usou o argumento do preconceito da "Zelite" para justificar a própria ignorância. Ao contrário: dominando também o francês e o inglês, tornou-se um fino e sofisticado ourives da língua portuguesa. Se vivo fosse, Machado seria tachado pelos companheiros petistas como um esnobe e um traidor da causa "afro-descendente".
Poderiam argumentar que nenhuma comparação entre Machado e Lula se sustenta, pois afinal Machado era um gênio, talvez o maior que tivemos, enquanto Lula é um político. Eu digo que essa comparação apenas torna maior o fosso entre as duas personagens, sem dela retirar seu conteúdo pedagógico. Gênio ou não, Machado veio do nada, tendo nascido e se criado em condições - e numá epoca - muito mais difíceis do que Lula. Sua trajetória de superação não é uma simples história do menino-pobre-que-venceu-na-vida-contra-tudo-e-contra-todos. É uma história de caráter. A de Lula, por sua vez, não pode ser resumida em simples gosto, ou falta de gosto, pelas letras. Não que, para ser presidente, é preciso ser um gênio literário, ou um acadêmico. Mas o sujeito que chega ao cargo mais alto da nação gabando-se de nunca ter lido um livro na vida, num país de analfabetos, não revela apenas despreparo e preguiça intelectual, além de dar um mau exemplo, mas também, e sobretudo, falta de caráter. Apontar esse fato não é preconceito. É vergonha na cara.
Passemos ao acordo ortográfico. Já seria piada o fato de seu signatário ter sido Lula - logo ele, que certamente não deve saber soletrar "ortográfico" - e que o evento tenha ocorrido, ainda por cima, na Academia Brasileira de Letras. Isso, por si só, já seria suficiente para demonstrar o caráter absolutamente inútil e demagógico dessa reforma. Mas o problema vai mais além. De acordo com as mudanças introduzidas, a diversidade, riqueza principal da língua portuguesa, sairá terrivelmente prejudicada em favor de uma decisão governamental.
A ordem do dia por trás da reforma é "unificar" o português escrito no Brasil, em Portugal, na África e na Ásia, retirando-se, por exemplo, os acentos agudos em palavras como "jóia" e "idéia", além de aposentar o trema, o que transforma a grafia de palavras como "tranqüilo" semelhante a do espanhol. E isso tudo de uma penada, como quis fazer aquele deputado comunista que queria banir, por decreto, expressões estrangeiras da língua falada e escrita no Brasil (deveria começar pelo nome de seu partido, "comunista" - um evidente galicismo). Em vez de separados pela mesma língua, como disse certa vez George Bernard Shaw ao referir-se ao inglês falado nos dois lados do Atlântico, estaremos, a partir de agora, unidos compulsoriamente pela vontade de nossos governantes.
Que Lula tenha sido o firmante de semelhante aborto é algo bastante simbólico. O acordo ortográfico assinado ontem pelo Apedeuta, desconfio, seria rechaçado por Machado de Assis. Assim como a trajetória do ex-metalúrgico. Provavelmente, em vez de propor a Lula apor sua assinatura trêmula no texto do acordo, o velho Machado lhe recomendaria ler um livro. De preferência, de Gramática. Ou um tratado sobre Ética.
por Gustavo Bezerra, no Blog do Contra
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