quinta-feira, 2 de outubro de 2008

20 Anos de Constituição Cidadã: Atuação Teatral

Aos 80 anos de idade e dono de uma tão extensa quanto diversificada vida pública, Célio Borja não vê nada de novo sob o sol do Brasil. Ou quase nada. A atuação "teatral" das autoridades, hoje mais comprometidas com a comunicação e a conquista de votos do que com a solução dos problemas objetivos do País, o deixa um tanto perplexo.

"O presidente da República é um grande comunicador, mas não governa; o Judiciário é socialmente ativo, mas ultrapassa o limite de suas atribuições; o Legislativo é submisso e os partidos fazem do Estado um aparelho."

Nesse quadro, atribuir os defeitos da conjuntura à Constituição de 1988 é atirar no alvo errado. Segundo Célio Borja a nossa não é pior - e em alguns casos é melhor - que todas as outras do mundo ocidental: extensas, detalhistas e constantemente corrigidas por emendas.

Célio Borja foi deputado no governo João Goulart, presidente da Câmara no período Ernesto Geisel, ministro do Supremo Tribunal Federal, integrante do "gabinete da crise" nos momentos finais de Fernando Collor e, a pedido do então presidente José Sarney, redator da emenda que convocou a Assembléia Nacional Constituinte. Portanto, fala de cadeira.

A Constituição de 1988 é tida como excessivamente detalhista. Trata-se de uma jabuticaba, coisa que só existe no Brasil?
De forma alguma. Gostamos muito de falar mal de nós mesmos, mas no mundo ocidental é mais ou menos o mesmo. Todas as Constituições feitas após a 1ª Grande Guerra são extensas. Antes só cuidavam da organização dos poderes públicos, da declaração dos direitos individuais, de algumas disposições relativas à organização do Estado. Depois, passaram a incorporar direitos da sociedade, disposições sobre as relações sociais e, com isso, ficaram detalhistas.

Em 20 anos a Constituição recebeu mais de 60 emendas. Isso faz dela, como se diz, um periódico?
De certa forma, pois chega um momento em que quem precisa aplicar a Constituição começa a não se entender com ela. Mas a necessidade de emendar as Constituições é universal exatamente porque elas descem a detalhes que acabam criando obstáculos ao ato de governar. As Constituições, e a nossa não é diferente, continuam destinadas a durar por gerações, mas não podem ser intocáveis.

Então, o sempre celebrado exemplo da Constituição americana é um mito?
Completo. A Constituição americana tem um monte de emendas e, pior, vem sendo interpretada pela Suprema Corte praticamente todo santo dia. Agora, o ideal seria que fossem mais enxutas. A brasileira não precisaria, por exemplo, instituir a polícia ferroviária num país sem ferrovias.

Por que a tendência ao detalhe?
A necessidade de se prevenir contra o arbítrio dos governantes e a pressão dos grupos de interesse sobre os constituintes para se verem representados na Constituição. Agora, se isso é um mal - e não é pacífico que seja -, todas as Constituições modernas padecem desse mal.

Qual a influência do regime autoritário sobre o perfil da Constituição feita em 1988?
A busca por uma situação oposta à anterior, um regime libertário. Daí termos, reconhecidamente, uma das mais extensas e melhores declarações de direitos individuais de quaisquer Constituições do mundo.

O que faz dela melhor?
Ela garante mais a liberdade, o patrimônio, o direito de defesa, restringe o arbítrio policial e judicial, consagra valores que a democracia cultiva de uma forma única entre Constituições modernas. Além dos tradicionais habeas-corpus e mandados de segurança, garante o mandado de injunção e obriga o poder público a prestar informação sobre o cidadão (habeas-data). São inovações em relação a outras Constituições.

Mas este ainda é um país injusto.
Não tanto quanto já foi, estamos avançando. Para avançar mais, seria preciso melhorar a qualidade da administração.

O que nos credenciou a inovar?
Nossa cultura jurídica é extremamente avançada. Somos atrasados sob muitos aspectos: tecnológico e científico, por exemplo. Mas, quando se trata do Direito, o Brasil é superavançado por causa da herança portuguesa, juridicamente muito organizada, e das contribuições da Itália e Alemanha.

A Constituição de 1988 poderia ter sido feita de outra forma?
No Brasil, desde o Império, o Congresso sempre foi dominado pelos bacharéis e isso tornava as Constituições mais ordenadas. Hoje o Parlamento é muito mais representativo da sociedade. Pagamos o preço da quebra do predomínio dos juristas, mas temos mais legitimidade na representação. Como chefe da assessoria especial do governo Sarney, o senhor redigiu a emenda de convocação da Constituinte.

Foi a forma correta ou hoje o sr. faria diferente?
Faria igual. A idéia de Constituinte exclusiva, com o Congresso funcionando paralelamente, resultaria em ingovernabilidade e jogaria o País no caos pelo inconveniente de ter dois órgãos legislativos funcionando ao mesmo tempo.

Mas essa idéia é recorrente. Hoje se fala em Constituinte exclusiva para a reforma política.
Seria um retrocesso, pois se voltaria 100 anos atrás, quando a representação do povo era exclusivamente de bacharéis. É mais perfeita tecnicamente, mas menos autêntica do ponto de vista representativo. Os escolhidos seriam constitucionalistas, porque os partidos não iriam querer que seus puxadores de voto se desqualificassem para a eleição política propriamente dita.

Nestes 20 anos de experimentação temos nos saído bem ou mal?
Muito razoavelmente bem.

Seria o caso de pensar em uma nova revisão constitucional, como se tentou em 1993?
No mínimo, seria prematuro. Estamos ainda em processo de conscientização sobre o que é necessário fazer.

E por que tendemos a atribuir todas as culpas à Constituição?
Não queremos reconhecer a culpa das pessoas. Estamos nos habituando a responsabilizar as instituições e não os culpados. Estes são os homens, aquelas são meras abstrações. O que falta hoje é consenso. Sabemos o que queremos, mas não como chegar lá.

Por quê?
Nossa cultura política é proporcional ao nível cultural dos nossos dirigentes, que não têm nível satisfatório nem são capazes de engendrar as soluções mais corretas. Fala-se demais, faz-se de menos. Apesar disso, o consenso fundamental nós temos. Sabemos que queremos liberdade, não queremos ditadura, autoritarismo; que temos o direito de exigir dos governos ações que nos assegurem mais segurança, mais escolas, saúde, etc. Agora, encontrar soluções não é tarefa do povo, é dos governantes. São eleitos para isso e não estão à altura do País.

Em que o sr. se baseia para sustentar essa afirmativa?
Na experiência de países que conseguiram encontrar boas soluções separando a administração das necessidades políticas do governo.

Parlamentarismo?
Não necessariamente. Basta o recrutamento pelo mérito e a organização por carreira. Hoje só existe isso no Itamaraty, nas Forças Armadas e no Banco do Brasil. Nossa praga são os cargos em comissão: desestimulam o funcionalismo permanente e impedem a administração de ter planos coerentes. Onde ela é exitosa, como na Embrapa e no Banco Central, a administração não se contaminou pelo aparelhamento político.

Em que ponto traçar a risca de giz, de modo a não se concluir também que a política é um mal?
Vamos falar do Congresso. A função dele é impedir a autocracia da administração. É dar rumo e limites a ela na sua prerrogativa de expressão do consenso popular a respeito do que deve ser feito, do que se quer.

Sob esse aspecto, como estão funcionando os Poderes?
Hoje o funcionamento é teatral, o que tem a ver com captação de votos, apoio popular. Isso é um erro. Supõe-se que porque eu funciono na CPI ou apresentei com grande estardalhaço o projeto x ou y estou captando apoio popular.

E não é isso?
Não. A teatralização tem a ver com a massificação dos nomes. Os políticos só pensam nisso porque essa é a forma de sobreviverem.

O teatro se limita ao Parlamento?
Não, o pior é que ele se dá principalmente no Executivo. O presidente da República está em campanha eleitoral permanente. E aí você começa a duvidar se determinadas iniciativas são coerentes com uma visão sobre as necessidades do Brasil ou se são meros jogos de cena. Enfim, a teatralização é um dos males.

Quais são os outros?
A desqualificação das competências. No Parlamento, o foco da atenção pública não vai para o trabalho das comissões e sim para o teatro do plenário ou das comissões de inquérito.

Mas essa não seria a forma contemporânea de diálogo?
Não, só se for para massificar o nome do único interlocutor que se beneficia dele. Isso não resulta em proveito da sociedade nem da instituição.

O sr. poderia citar um exemplo do teatro no Executivo, fora a performance eleitoral do presidente?
A Polícia Federal.

O ativismo do Judiciário faz parte desse teatro?
Há muito de temperamento na mudança de comportamento dos juízes. Pela Lei da Magistratura, o juiz deve ser discreto, uma figura modesta, como sempre foram os juízes até muito recentemente, quando passaram a dar entrevistas, a prejulgar causas. A atitude mudou quando o juiz passou a se sentir um protagonista, a querer se comunicar além daquilo que deveria.

No caso do STF, ele não atende a uma demanda real da sociedade?
Há uma percepção errada dos juízes sobre a contribuição que eles podem dar para que deficiências de outros Poderes sejam corrigidas.

Quando isso se manifesta?
Quando o Judiciário quer fazer a lei no lugar do Congresso. Não como Poder, mas alguns juízes estão convencidos de que têm o dever de substituir o Parlamento e fazer leis.

O Legislativo não está abrindo mão de suas prerrogativas ao ser submisso ao Executivo?
Está, mas o Judiciário pode ocupar o vácuo pelo simples controle da aplicação das leis. Usa-se a expressão ativismo judiciário de forma equívoca. O juiz precisa ser ativo. Não pode é pretender substituir o Legislativo. Isso vai gerar o que um livro clássico chamou de A Ditadura dos Juízes, sobre a Corte Suprema dos Estados Unidos, entre o fim do governo Roosevelt e o de Kennedy.

Qual foi a conseqüência?
Conflitos permanentes entre a Corte o presidente e um abastardamento do Congresso americano.

Corremos o risco de viver essa situação, de preponderância e, portanto, desequilíbrio de Poderes?
Há a tendência para isso. Mas, à medida que fico velho, chego à conclusão de que é difícil mudar o curso da História, ela se corrige por si. Antônio Machado diz isso num verso perfeito: "Se faz caminho ao andar."

A teatralização não é fruto do governo Lula nem privilégio do Brasil. A que se pode atribuí-la?
Ao fato de funcionarmos com a cabeça de dez anos atrás. Ainda pagamos tributo ao marxismo, ao fascismo, ao nazismo, às idéias visionárias que geraram coisas boas - como a preocupação com o ambiente, a desigualdade social - e ao mesmo tempo nos fazem pensar com uma cabeça velha. Um legado é o patrulhamento, produto da predominância das ideologias que só agora começa a se esgarçar, mas tem ressurgido.

Sob quais formas?
O fascismo sob a forma da violência de Estado e da confiança exclusiva na autoridade, quando deveríamos aprender a confiar na liberdade. Há ainda a crença em dogmas. Isso responde, a meu ver, por muitas de nossas perplexidades.

Fatalismo à parte, temos uma confusão de papéis, principalmente no aparato de segurança do Estado. O que está havendo?
O problema aí não é institucional. Vivemos um momento em que o presidente da República falta a uma das suas principais responsabilidades, a de chefe da administração. Ele tem a atribuição de dar unidade ao governo e impulso à administração.

Por que falta isso ao presidente?
Não gostaria de aventurar uma opinião. Sempre depositei grande esperança no Lula. Não votei nele, mas só o fato de ser filho de nordestino já me levava a ter enorme simpatia por ele. E o fato de um homem modesto, do interior de Pernambuco, chegar à Presidência é um marco na História do Brasil e do continente. Sempre o defendi, embora achando que tenha um partido fascista.

Quando o sr. mudou de opinião?
Fiquei absolutamente derrotado com a conduta dele diante de auxiliares que delinqüiram. Presidente não passa a mão na cabeça de ninguém. E ele repetiu isso agora, dizendo que o mensalão foi uma armação, quando os protagonistas já estão sub judice no Supremo. Isso mostra que o presidente tem uma fraqueza e ela é mortal para a dignidade do povo brasileiro. Isso me faz ter uma reserva invencível em relação a ele.

E os méritos, não existem?
Sem dúvida. O maior foi ter levado o Brasil a ser um país internacionalmente convivível. Collor abriu a economia, Fernando Henrique colocou o presidente numa posição privilegiada, pelos seus méritos pessoais, e garantiu progresso econômico, mas Lula tornou o Brasil perceptível aos olhos da opinião pública internacional.

Se o povo sabe o que quer, mas o governo não sabe como executar essa demanda, qual é a saída?
Falta objetivo, saber por onde e aonde queremos ir. Exemplo: fala-se em reforma política, mas as propostas são de uma reforma apenas eleitoral.

Como seria a reforma de verdade?
Ela deveria se preocupar com a definição clara dos papéis de governo e administração, para acabar com o aparelhamento e desmontar a forma de trabalhar dos partidos.

No detalhe, por favor.
Se você despartidariza a administração, tira a principal ferramenta dos partidos que se promovem à base de oferecer empregos, cargos importantes do governo e, sobretudo, de se infiltrarem na administração. Essa reforma obriga os partidos a se sintonizarem com o povo e dele tirarem sua força.

Na prática, como se faz isso?
Separando para valer governo e administração. Acabando com cargos de confiança para adotar o recrutamento pelo mérito e a organização de carreiras. Isso tira o alimento dos partidos, forçando-os a disputar na sociedade e não mais na máquina.

As outras mudanças viriam como conseqüência?
É isso. Quando os partidos forem para a sociedade, necessariamente terá de haver uma mudança nesse sistema eleitoral louco pelo qual você vota num candidato e elege outro.

Mas quem muda as leis são os mesmos que se beneficiam delas. Como executar essa proposta?
Falta a liderança capaz de convencer a sociedade de que as coisas começam a mudar por aí.

O sr. vê alguém com esse perfil?
Ninguém. O único com a capacidade de comunicação necessária é Lula, mas, infelizmente, ele não compreende essa realidade.

E alguém sem a mesma capacidade de comunicação, mas sintonizado com a compreensão, existe?
Tem que existir. O Congresso ainda tem as melhores cabeças e tenho a esperança, pelo que ouvi recentemente, de que haja uma tentativa de conversa entre pessoas de governo e oposição no sentido de construir uma saída.

Quem são? O que conversam?
É gente responsável, que está à procura de idéias.

Se o sr. não reconhece no presidente Lula atributos de líder, como o definiria?
Como um grande comunicador.

Como definir o momento atual?
É de desarticulação. Todo mundo quer alguma coisa, falta saber como fazer. Falta, sobretudo, diálogo para construir soluções.

O caso da escuta no telefone do presidente do STF é institucionalmente relevante?
Não. É um caso teoricamente simples de investigação policial. Assume caráter de crise pela ausência de um líder. Nada está desandando, é preciso só corrigir defeitos da administração.

Há sinais animadores no Brasil?
Vários. O impeachment do Collor mostrou que a lei existe para todos. O presidente não está acima da lei nem é senhor dos ministros. O patrulhamento esqueceu de propósito a atuação daquele gabinete de crise, do qual fiz parte, e em momento algum funcionou como uma barreira de proteção ao presidente. Além disso, temos visto que os responsáveis por desvios de conduta estão lá no Supremo.

por Dora Kramer, no Estadão, em 02/10/2008

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