Isso, um dia, haveria fatalmente de acontecer. De Lenin para cá, o inimigo dos povos pobres eram os países desenvolvidos, que usavam até mesmo a força para obrigar aqueles a comerciar com desvantagem. Segundo Vladimir Ulianov - nome verdadeiro do líder da Revolução Russa -, os ricos não exploravam mais os pobres em seus próprios países, preferiam unir suas forças para tirar proveito das nações menos desenvolvidas. Inimigos, por exemplo, eram os países ricos da Europa, aqueles que já haviam realizado as suas revoluções industriais.
Da 2ª Grande Guerra para cá, o inimigo mudou de endereço. Donos de praticamente metade das riquezas do mundo, era natural a eleição, como alvo preferencial, dos Estados Unidos da América. A nossa América Latina não ficou indiferente a esse movimento. Muita tinta e muito papel foram gastos por aqui para esconjurar os demônios do norte. O maior investidor em cada um dos países da América ibérica e também o maior parceiro comercial, era previsível que a opulência norte-americana despertasse a cobiça dos seus irmãos latinos, uma vez que "não havia outra explicação para o fato de eles serem tão ricos e os demais, tão pobres". Educação, instituições, desenvolvimento tecnológico, nada disso era levado em conta, para não desafinar o canto da procissão. Os ricos são ricos tão-somente porque exploram os pobres e ponto final.
A tese, nestas plagas, ganhou finalmente a sua bíblia, o seu livro sagrado, com a publicação da rancorosa obra do uruguaio Eduardo Galeano As Veias Abertas da América Latina, no início da década de 1970. Escritor talentoso, Galeano pôs a sua pena a serviço da ideologia e conseguiu pintar com cores demoníacas até onde nem sequer um pequeno capeta havia. "A América Latina estava inteirinha a serviço dos EUA!", concluía, alarmado, o escritor.
Li esse livro nos meus primeiros anos de universidade. Embora tudo o que fora afirmado ali fosse de difícil comprovação, o fato é que as verdades convenientes não carecem ser chanceladas pelos fatos: acredita-se nelas e pronto. Após sua leitura, tive ímpetos de tomar o primeiro quartel que avistasse. Ainda bem que não o fiz. A História é uma senhora caprichosa e ainda haveria de dar muitas voltas nos 35 anos posteriores.
A virada do jogo se deu com a posse, como presidente da Venezuela, do coronel Hugo Chávez. Surpresa! No índex do ditador, o Brasil constava pela primeira vez como um dos países exploradores e vilões. Como isso era possível? Pois não foi aqui que se produziu a maior tonelagem de livros antiimperialistas? É verdade, como também é verdade que nós possuímos o maior território da América Latina, temos a economia mais desenvolvida e, ainda por cima, falamos um idioma diferente dos demais na região. Não basta isso para assegurar a nossa candidatura ao clube das nações odiáveis?
Logo depois de Chávez, tomou o poder na Bolívia o pseudo-índio Evo Morales, que, já no dia de sua posse, declarou ser o Brasil a principal potência a ser combatida e anunciou, para logo em seguida, a expropriação de duas usinas brasileiras em território boliviano. A promessa foi cumprida na íntegra. Em seguida, assomou ao poder, no Equador, mais um líder típico, Rafael Correa. Somados estes ao casal Kirchner, da Argentina, que nunca escondeu o seu veio peronista, e mais Alan García, que busca cumprir as suas promessas de austeridade, mas o passado o condena, temos um quadro de volta ao passado, quando todas as nações da América do Sul rezavam pela cartilha populista.
O novo populismo - que acaba de levar a Presidência do Paraguai - é mais sofisticado e complexo do que o antigo. A base popular destes novos regimes não é mais composta pelos sindicatos organizados, mas sim pelos "despossuídos", uma massa disforme, geralmente de origem rural, que se caracteriza por "não possuir alguma coisa: seja terra, seja teto, seja o que for". É a essa gente que arengam os novos messias, prometendo o Céu na Terra e benesses de todos os tipos. A origem dos recursos para tanto, como no populismo tradicional, é incerta. Geralmente se alega que vão conseguir concessões comerciais de países vizinhos mais desenvolvidos.
O ódio aos Estados Unidos, como não podia deixar de ser, está presente no ideário dos novos líderes, já que nossos irmãos do norte continuam sendo a nação mais rica do planeta. Mas, em se tratando de mágoa, os neopopulistas têm outras prioridades de que cuidar. O Brasil é a principal delas e se enquadra perfeitamente no perfil de "imperialista odiável": temos um território avantajado, um parque industrial muito mais moderno e desenvolvido do que os dos nossos vizinhos e, suprema heresia, quase todos dependem do comércio conosco para a saúde de suas economias.
Quem estudou na minha época pode enrolar as suas bandeiras de luta, porque agora os imperialistas somos nós. Todo o rancor que nós destilávamos contra os Estados Unidos agora se voltou contra o Brasil. Aqueles, dentre nós, que derramaram lágrimas ao ler o livro de Eduardo Galeano hoje repensam se é totalmente verdadeira a retórica repleta de impropérios do escritor uruguaio. Afinal, os mesmos argumentos de que ele se valeu para insuflar os intelectuais latino-americanos contra os norte-americanos estão, agora, sendo usados contra nós.
O que mais impressiona nesse novo quadro político é o comportamento ambíguo do presidente Lula. O fato é que ele tem de bajular todas as correntes que o elegeram duas vezes para ocupar o Planalto. E isso implica, entre outras coisas, prestar reverência a todos os líderes sul-americanos que surgirem brandindo uma bandeira com tons avermelhados.
Triste sina a nossa!
por João Mellão Neto (jornalista, deputado estadual; foi deputado federal, secretário e ministro de Estado), em 25/04/2008 no Editorial do Estado de São Paulo
Nenhum comentário:
Postar um comentário