Morei ali no albergue São Francisco, que ficava na esquina da rua Santo Amaro, com o viaduto Jacareí, bem em frente à Câmara Municipal de São Paulo. Ele foi desativado há 15 dias, da noite para o dia, por força de um abaixo-assinado dos moradores, pois o local se transformou em um ponto de albergados e marginais de todo o tipo, e retornou para a baixada do Glicério que estava sendo fechado. Antes o São Francisco chama-se Cireneu e era administrado por uma Ong de quinta categoria, com verba liberada pela Prefeitura, por meio da Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social.
Pois bem. Em abril, os padres franciscanos assumiram o comando do albergue e o que era ruim ficou pior. Acho muito estranho que o padre Júlio Lancelotti e outros religiosos liderem uma passeata com moradores de rua, usando albergados como massa de manobra para conseguir, talvez, mais recursos da Prefeitura.
Maus tratos
Ali , no albergue São Francisco, os padres, que zelam tanto pela fraternidade, tratavam os albergados de forma desumana. Éramos mais de 400 pessoas amontoadas num imenso porão-dormitório sujo, que alagava quando chovia. Era um depósito de seres humanos, com um cheiro insuportável. Senhores com mais de 80 anos misturavam-se a jovens alcoólatras, drogados, crianças, mulheres, deficientes físicos e mentais, tuberculosos, portadores do vírus da aids, ex-presidiários e outros ainda cumprindo pena condicional, sem nenhum tipo de assistência.
Aquilo se assemelhava mais a um campo de concentração nazista. Durante cinco anos, o albergue funcionou ali, debaixo do viaduto, sob um estridente barulho, o "dum-dum" dos veículos que passam pelas emendas sobre o viaduto. Esse incômodo barulho martelava nossos ouvidos a noite toda. Nunca se tomou uma providência.
Com raríssimas exceções, os monitores, contratados pela igreja sem a mínima qualificação profissional, sentiam prazer em nos humilhar, deixando-nos na fila, debaixo de chuva e frio, à espera da hora de entrar. As regras são draconianas. Entra-se após às 17h30 e acorda-se às 5h. Até as 7h, todos têm que ir para a rua, inclusive aos domingos e feriados. As assistentes sociais explicavam que eram ordens da Prefeitura e não podiam fazer nada. Assim, todos, até mesmo as senhoras e outras pessoas com idade avançada tinham de sair, fizesse sol ou chuva.
Sem camas – Um dia, com princípio de pneumonia, pedi para ficar lá dentro, pois chovia e fazia frio. Me sentia muito mal. Solicitei a um dos monitores que me deixasse ficar e ouvi:
"Não enche o saco, meu. Você não sabe que os padres não querem ninguém aqui dentro? Vá embora".
No dia seguinte, muito mal, me escondi na biblioteca e não saí. Era começo de maio, fazia um frio insuportável. Foi então que presenciei uma cena lamentável: o coordenador dos franciscanos dentro do albergue mandou retirar centenas de camas (são beliches) do dormitório para colocá-las nos porões daquele fétido lugar. Ele dizia aos outros monitores: "Quanto menos camas, melhor. Agora vem o frio, a Prefeitura vai querer mandar mais gente para cá e, desse jeito, podemos dizer que não há lugar". Depois, espaçou as camas que restaram para dar a impressão de que não havia mais lugar.
"Há uma indústria da miséria"
No albergue São Francisco, que funcionava sob o viaduto Jaceguai, muitos dos idosos que lá dormiam não conseguiam mais fazer suas necessidades fisiológicas no banheiro. E sujavam na roupa, na cama, no chão. Não havia fralda geriátrica para eles.
Muitas vezes vi albergados mais novos ajudando os mais velhos a tomar banho. Vi vários deles caídos no chão, pedindo ajuda. O pior de tudo é que o albergue São Francisco foi desativado, mas na Baixada do Glicério (seu novo endereço) a situação continua a mesma, segundo relatos dos albergados que foram removidos para lá. Outros foram encaminhados para um hotel social (a Prefeitura o chama de Centro de Recolhimento), na rua Francisca Michelina, na região central da cidade. A comida é razoável, mas costuma provocar indisposições estomacais.
Monopólio da Igreja
Depois disso tudo, cheguei à conclusão de que deve existir "uma indústria da miséria". Em São Paulo, o monopólio dos moradores de rua está nas mãos da Igreja. Ela usam a verba da Prefeitura, mas gasta muito pouco na melhoria dos serviços do albergue.
Na época em que se chamava Cireneu (nome de um empresário ligado ao grupo Copagaz) a coisa era ruim, mas só aceitavam pessoas com mais de 40 anos. Depois que a Igreja assumiu o albergue, abriu as portas para todo mundo. Então, jovens, líderes de facções criminosas, assaltantes, e até traficantes passaram a almoçar e morar lá. Eram comuns os princípios de tumulto.
"Muquiranas"
Para se conseguir almoçar era preciso esperar, em média, 3 horas, debaixo de chuva ou de sol. Os padres se recusavam a abrir os portões para que pudéssemos entrar e nos abrigar. Um papel colado na parede interna do dormitório indicava que a dedetização estava vencida havia 3 meses.
Os dormitórios ficavam infestados de baratas e de outros insetos, principalmente de "muquiranas", uma espécie de piolho que dá no corpo de quem não toma banho, produzindo uma coceira insuportável. É muito fácil ficar infestado. São os moradores de rua que os trazem.
Com auto-estima muito baixa, mas com alguma dignidade, suportávamos todo tipo de humilhação que nos era imposta, com medo de sofrer represálias: ser cortado e ir para rua. Era fila para entrar, fila para pegar alguma roupa no bagageiro, fila para tomar banho (quando os chuveiros funcionavam) e fila para jantar. Não adiantava muito tomar banho, porque éramos obrigados a vestir a mesma roupa, que cheirava mal.
Vícios
Pude constatar que a maioria dos albergados já está, de alguma forma, mentalmente comprometida com os vícios adquiridos e não existe uma política específica para tratar dessa questão social. Não há tratamento diferenciado para cada tipo de problema, curso técnico, suporte jurídico, assistência médica. Enfim, não há nada. Entra-se no final da tarde, só toma banho quem quer, dorme-se e, às 5h da manhã, todo mundo acorda.
No café da manhã é servido um pão (de hot-dog) com manteiga e café com leite de soja (mais dor de barriga em todo mundo). Depois, dez horas passadas na rua. Essa é a rotina. Do jeito que funcionam, esses albergues não contribuem para nada. Dali, a maioria sai e passa o dia bebendo e se drogando até a hora de voltar. Poucos trabalham ou fazem bicos. Estão todos abaixo da linha da pobreza. Dificilmente conseguem se reintegrar à sociedade.
Chá com política
Quem mora em albergue ou pelas ruas da cidade conhece muito bem o que é uma "boca de rango". É aquele lugar que oferece comida de graça aos pobres. Em São Paulo existem várias delas e uma das mais conhecidas, e bastante freqüentada, é a do "chá do padre". De segunda a sexta-feira, as 14h, a igreja de São Francisco, com entrada pela rua Riachuelo, oferece chá com dois pãezinhos com manteiga. O salão fica lotado e é nessa hora que os religiosos aproveitam para fazer suas pregações políticas, incitando os moradores de rua e albergados a se organizarem em movimentos políticos para reivindicar seus direitos junto ao governo. Até um terceiro mandado do Lula já foi questionado lá.
Quando não é no chá, essa doutrinação política é feita nos albergues, por meio das assistentes sociais. Mas os albergados são avessos a esses movimentos. As assistentes sociais também convocaram todo mundo para protestar no dia 1º de Maio, a pedido da Igreja. Disseram que era importante a presença dos albergados nessas manifestações. A Igreja mandou confeccionar vários cartazes e distribuíram farto material para que fossem feitas faixas e cartazes. Todos deveriam estar reunidos na praça da Sé. Mas ninguém deu a menor importância a isso.
A Prefeitura, por sua vez, faz propaganda enganosa, espalhando pelas principais praças da cidade peruas Kombi azuladas, com os dizeres "São Paulo Protege". Existem cerca de 13 mil moradores de rua em São Paulo, mas só a metade deles mora em albergue. Essas peruas só recolhem as pessoas da rua no final da tarde. E nem sempre existem vagas nos albergues. Cheguei a ver gente entrando às 2h da manhã para sair logo depois, às 5h.
Prefeitura diz que vai apurar
O supervisor de Assistência Social da Região da Sé, Luiz Fernando Franceschini, afirmou que vai apurar as denúncias feitas. "São denúncias fortes, graves, mas temos de apurar com cuidado, porque o problema é muito complexo", afirmou.
Falando em nome do secretário da Assistência e Desenvolvimento Social, Franceschini admitiu que não existe, de fato, uma política pública que dê amparo a esse tipo de população. "Estamos nos esforçando para melhorar os serviços, readequar os albergues, a fim de evitar que problemas mais graves aconteçam".
O supervisor, porém, fez questão de ressaltar que a falta de assistência aos idosos (como a doação de fraldas geriátricas, por exemplo) é um problema da Secretaria da Saúde que, por meio das Unidades Básicas de Saúde e dos Ambulatórios Médicos, deveriam se responsabilizar por isso. Franceschini também admitiu que não existem asilos suficientes para acolher todos os idosos em situação de rua.
O albergue situado no Glicério também será desativado, anunciou o supervisor. Ele disse que a Prefeitura está procurando dois imóveis para abrigar os albergados. Disse ainda que, por se tratar de um assunto sério e complicado, a Prefeitura encontra uma série de dificuldades para resolver o problema: "Em princípio, nós confiamos no Serviço Franciscano de Fraternidade, que entende da questão de moradores de rua e albergados".
por Rubens Marujo, no Diário do Comércio
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