terça-feira, 12 de agosto de 2008

A Anistia no Brasil

Recentemente a mídia nacional se viu agitada com o decreto de prisão preventiva de mais de uma dezena de cidadãos brasileiros, por ordem de Juiz italiano, e a pedido do Ministério Público Romano.

Preliminarmente, falou-se na extradição dos mesmos, surgindo, de logo, o impedimento ante a proibição constitucional.Depois, movimentou-se uma parcela da opinião pública no sentido de se revogar a lei de anistia, a fim de que se pudessem processar os futuros prisioneiros justiçados pela Itália.

Nenhuma das matérias em tela, nem extradição e nem anistia, se beneficiam com alteração, em vista das cláusulas pétreas de nossa constituição. É que, tais cláusulas, universalmente, se constituem em institutos que, fazendo parte da carta magna, são irrevogáveis.

CONCEITUAÇÃO E FINALIDADES DA ANISTIA
Cabe aqui, especialmente, o exame de alguns aspectos relativos ao fim jurídico e social do instituto da anistia. Primordialmente, o seu uso é dirigido ao fim de apaziguar, serenar e pacificar os ânimos exacerbados, advindo, normalmente, de divergências que se seguem às crises políticas, geralmente, revolucionárias. O fim social da anistia se encontra nas próprias origens do instituto, qual seja, restabelecer a concórdia entre nacionais depois das lutas intestinas. Seu objetivo teleológico, portanto, é o mais nobre possível, eis que, filantrópico e altruísta.

CARLOS MAXIMILANO explica que a palavra ‘amnistia’ vem do grego – esquecimento – que seria “o ato do poder soberano que cobre com o véu do olvido certas infrações criminais e, em conseqüência, impede ou extingue os processos respectivos e torna de nenhum efeito penal as condenações.” [3]

Os Romanos tinham-na como “lex oblivionis” mostrando que a escolha do nomen juris tinha que representar, em sua razão ontológica, o esquecimento [amnésia].

Bruno e Valério concederam anistia aos que haviam acompanhado o rei Tarquínio; Cícero, invocando o exemplo de Thrasybulo, obteve outra, no Senado, para os assassinos de Júlio César. [4]

É ainda MAXIMILIANO quem nos dá a noticia da vida do Decreto de Patróclides logo depois da batalha de Egos Potamos que pôs findo as guerras do Peloponeso: “Esta anistia, destinada a reconciliar com a pátria, naquele momento de perigo supremo, tudo o que lhe restava de cidadão, bem como a unir todos os corações em um último esforço, fora imitada segundo recorda o próprio Patroclides, da que votaram os atenienses por ocasião das Guerras Médicas.” [5]

BARBALHO, abordando a matéria refere à anistia como “... ... núncia de paz e conselheira de concórdia, parece antes, do céu prudente aviso, que expediente de homens.” [6]

Diz que seu nome traduz “esquecimento” que é mais que perdão e misericórdia, pois não humilha nem abate ninguém.

ANAURELINO LEAL, em sua Teoria e Prática da Constituição, leciona que “a amnistia é, portanto, o esquecimento de uma ou muitas infrações: lex oblivionis quam Groeci amnestia vocant. [7]

É que, confirmam os doutos, a anistia não se concede por sentimentalismo ou bondade, simpatia pelo vencido ou misericórdia pessoal. É medida amplamente política, adotada por motivos elevados, que não humilham o cidadão a quem ela aproveita, inspirada por sérias razões de Estado. É medida pacificadora, supremo recurso para a união nacional. Nas raízes. E continua o eminente constitucionalista: “Tomando-a, portanto, em tal sentido, ela só encontra limites no futuro. Não se anistiam atos futuros, mas atos pretéritos, o que faz da instituição jurídica em exame um modo de retroatividade da lei; isto é, o ato que determina a anistia retroage, impedindo que as leis penais vigentes, punitivas das infrações anistiadas, tenham execução a respeito delas.” [8]

ANISTIA, INDULTO, GRAÇA, COMUTAÇÃO E PERDÃO
De outro lado, a anistia tem seu caráter eminentemente genérico, distinguindo-se da graça, do indulto e do perdão por serem medidas individuais, nominativas. Assim, por exemplo, o indulto de natal é endereçado aos presos que preencherem determinadas condições estipuladas no decreto. O mesmo se diga da graça e do perdão.

MAXIMILIANO analisa os conceitos de indulto, anistia e comutação definindo como: “Indulto é o perdão total ou parcial da pena concedido a um indivíduo; anistia, o esquecimento total, ordenado em lei ou prometido em proclamação, de um ou mais crimes praticados por uma classe de pessoas: denomina-se comutação, a substituição de uma pena por outra menos grave.” [9]

Por isso que, o indulto é ato do executivo e a anistia só pode ser por ato do Congresso Nacional. Um tem caráter individual, o outro é coletivo. Aquela elimina completamente a falta, enquanto que o último conserva os efeitos morais e civis do crime.

De outro lado, indulto e perdão somente podem existir a réus já condenados. O Presidente da República, e nunca o Congresso Nacional, só pode perdoar ou indultar penas impostas a réus condenados por sentença com trânsito em julgado.

Para melhor ilustrar a matéria, MENDONÇA DE AZEVEDO faz a distinção a partir de um Habeas Corpus, oriundo do Rio Grande do Sul, do qual refere:

“O impetrante fundou o seu pedido de H.C. na cir­cunstância de deverem estar os pacientes compreendidos no Decreto n. 310, ele 21 de Outubro ele 1895, que anistiou a todos aqueles que direta ou indiretamente se envolveram nos movimentos revolucionários ocorridos no território da Republica.

Entretanto, das provas constantes destes autos claramente se evidencia: que os pacientes, logo que tiveram notícia do movimento revolucionário realizado em Porto Alegre, no dia 27 de Junho ele 1892, saíram para a rua, provocando desordens, e que depois foram para a estrada, onde assassinaram o capitão Crescêncio, que com ou­tros companheiros, se dirigia pacificamente para a vila de Viamão.

Ora, assim sendo, não se pode considerar semelhante assassi­nato como crime político. A simples circunstância de ter coincidido esse homicídio com a notícia de um movimento revolucionário não basta para se inferir que fosse o mesmo crime de natureza política.

Para que um crime, aliás de natureza comum, possa ser classificado como crime político, é essencial a prova plena de que teve ele por móvel único e exclusivo um interesse puramente político.

Mas não existe em nenhuma delas, peças do processo, o mais li­geiro indicio de haver sido a morte do capitão Crescêncio determi­nada por qualquer interesse político comprometido; ao contrário, da sua leitura ressalta a convicção de que a causa desse assassinato obedeceu antes a uma vingança pessoal, pois que um dos assassinos era inimigo do assassinado" (20-10-1897). [10]

E continuava o comentador constitucional: “amnistia não é absolvição, nem produz os efeitos desta.”

RUY BARBOSA, quem mais entre nós doutrinou sobre a anistia, assim lecionava:

“São bem conhecidas as características da anistia. O "véu de eterno esquecimento", em que os publicistas e criminalistas dizem por ela envolvidas as desordens sociais, objeto desse ato de alta sabedoria política, não é uma vul­gar metáfora, mas a formula de uma instituição soberana. Por ela, não só se destroem todos os efeitos da sentença, e até a sentença desaparece, senão que, remontando-se ao delito, se lhe elimina o caráter criminoso, suprimin­do-se apropria infração. Por ela, ainda mais, além de se extinguir o próprio delito, se repõem as coisas no mesmo estado em que estariam, se a infração nunca se tivesse cometido. Esta é a anistia verdadeira, a que cicatriza as feridas abertas pelas revoluções, aquela cujas virtudes o historiador grego celebrava nesta palavras de eloqüente concisão: “Eles perdoaram, e daí avante conviveram em democracia.” [11]

THEMÍSTOCLES CAVALCANTI, em seus ‘comentários’ diz que a anistia apaga o crime político, é ato de benemerência pública. [12]

A ANISTIA É TANTO IRREVOGÁVEL QUANTO IRRECUSÁVEL
Outra característica da anistia é ser ela tão irrecusável quanto irrevogável. Não cabe à classe beneficiada com a lei que a anistiou falar em não aceitação. Não lhe cabe buscar a absolvição em qualquer juízo ou instancia. Especialmente se ela é ampla e total, como a última a vigorar no país. Por isso, por ser ampla e irrestrita, também, é irrevogável.

HISTÓRIA DA ANISTIA DOS CRIMES ACONTECIDOS APÓS 1964
Ernesto Geisel, assumindo a Presidência da República em 1974 trazia a todos os brasileiros a promessa de fazer uma "lenta, segura e gradual" distensão política.

No entanto, e contraditoriamente, é no seu governo que ocorrem duas mortes: a do jornalista Vlamidir Herzog e a do operário Manoel Fiel Filho. Registrou-se, também, o assassinato de dirigentes do Partido Comunista do Brasil no episódio que ficou conhecido como "Chacina da Lapa".

É no seu governo que se editou o pacote de abril, e no qual se continuaram as cassações de mandatos políticos. As eleições continuavam indiretas, para a Presidência da República, Governadores de Estados e Senadores, bem como aos Prefeitos das capitais.

À época, na Câmara dos Deputados, a oposição obteve considerável maioria. Isso deu coragem à sociedade civil para se organizar e resistir. Assim é que foi criado o Movimento Feminista pela Anistia.

A Ordem dos Advogados do Brasil, a Associação Brasileira de Imprensa e a Igreja Católica se posicionam em favor da democratização ampla e total. O movimento estudantil e operário sai às ruas. Surgem, em 1978, os primeiros Comitês Brasileiros de Anistia, congregando os opositores da ditadura, com apoio decisivo de diversos parlamentares.

É realizado em São Paulo o 1º Congresso Nacional da Anistia, com a presença e participação de milhares de pessoas, lutando pela "Anistia, ampla, geral e irrestrita". Ampla, porque deveria alcançar os atos de todos os punidos com base nos Atos Institucionais, geral e irrestrita porque não deveriam impor qualquer condição aos seus beneficiários, inclusive com a ausência de exame de mérito dos atos por eles praticados.

Findo o governo Geisel, assume a Presidência o general João Batista Figueiredo. Isso em 1979. O Regime Militar sequer admitia a possibilidade de anistia, e sugere o indulto para os presos políticos, o que não foi aceito por ninguém.

Começa a distensão. Os atos, nas ruas e no Congresso Nacional, se engrandecem. Com o apoio de parlamentares, dos Comitês de Anistia e de parcelas da opinião pública, partem em luta pública por uma anistia ampla, geral e irrestrita.Há a famosa greve dos presos políticos, com uma importância enorme para o desenrolar dos fatos. Dura perto de um mês.

O presidente João Figueiredo se compromete, então, a revisar os inquéritos e processos de cassações e as condenações dos presos políticos. Em agosto de 1979 encaminha ao Congresso Nacional, um novo projeto de anistia composto de 15 artigos, diz em seu artigo nº 1:

"É concedida anistia a todos quanto, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 e 15 de agosto de 1979, cometeram crimes políticos ou conexos com estes, crimes eleitorais aos que tiveram seus direitos políticos suspensos e aos servidores da administração direta e indireta, de fundações vinculadas ao poder público, aos servidores dos Poderes Legislativo e Judiciário. Aos militares e representantes sindicais punidos com fundamento em atos institucionais e complementares e outros diplomas legais".

O artigo era composto de três parágrafos. Um deles dizia:

"Excetuam-se dos benefícios da anistia os que foram condenados pela prática de crimes de terrorismo, assalto, seqüestro e atentado pessoal".

Não era o que se queria e nem o que se pedia, e sim, o que se podia admitir para a época. Dizia-se que era o arrombamento das portas por onde entraria a plena e total democracia.

Por isso, o projeto foi aprovado e promulgado no dia 28 de agosto de 1979. São soltos, então, os presos políticos e retornam ao país os exilados. Volta a reinar a paz, sem que se perca de vista o sonho da anistia ampla, geral e irrestrita.

ANISTIA PÓS REGIME DISCRICIONÁRIO
Em 1985, depois de duas décadas, tem início o ciclo dos governos civis. É eleito Tancredo Neves que, morrendo antes mesmo de sua posse, dá lugar a seu vice-presidente, José Sarney.

Em novembro do mesmo ano, através da Emenda Constitucional de nº 26, é concedida a anistia que, pelo seu art. 4º, demonstrava que o destino era a "todos os servidores públicos da Administração Direta e Indireta e Militares, punidos por atos de exceção, institucionais ou complementares.”

Seu parágrafo 1º acrescentava: "É concedida, igualmente, anistia aos autores de crimes políticos ou conexos, e aos dirigentes e representantes de organizações sindicais e estudantis, bem como aos servidores civis ou empregados que hajam sido demitidos ou dispensados por motivação exclusivamente política, com base em outros diplomas legais".

Veio a Constituição de 1988 que, nos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias, determinava, pelo seu artigo 8º: "É concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção, institucionais ou complementares, aos que foram abrangidos pelo Decreto Legislativo nº 18 de 15/12/1961, e aos atingidos pelo Decreto-Lei nº 864 de 12/09/1969, asseguradas as promoções, na inatividade, ao cargo, emprego, posto ou graduação a que teriam direito se estivessem em serviço ativo, obedecidos os prazos de permanência em atividades previstas nas leis, regulamentos vigentes, respeitadas as características e peculiaridades das carreiras dos servidores públicos civis e militares e observados os respectivos regimes jurídicos".

Foram essas leis, que ampliaram a anistia concedida em 1979, ensejando diversas ações indenizatórias, algumas delas milionárias até.

Somente em 1996 é que foi aprovada a Lei 9.140/96 que concedia indenizações às famílias dos desaparecidos políticos, parcela esquecida na legislação anterior. No entanto, ficara restrita aos Estados de São Paulo, Paraná, Rio Grande do Sul e Santa Catarina.

Treze anos depois da promulgação da Constituição é que, através da Medida Provisória nº 2.151/01, foi regulamentado o artigo 8º, das Disposições Constitucionais Transitórias.

Constituía-se de cinco capítulos e de vinte e dois artigos.

O período abrangido pelos efeitos da anistia é mais amplo, pois que, de l8 de setembro de l946 a 05 de outubro de l988. Dava poderes ao Ministro da Justiça a formar uma Comissão Especial para examinar os direitos civis e indenização aos anistiados.

Como nunca antes, a legislação do esquecimento foi tão generosa e altruísta. E sendo a anistia uma via de mão dupla, o ato de anistia, faz esquecer, obrigatoriamente, os atos que geraram as razões da existência de anistiados.

CONCLUSÃO
As sucessivas Leis e Medidas Provisórias que dispõem sobre a anistia, têm como anistiados todos aqueles que, de qualquer forma, praticaram atos políticos, desde a promulgação da Constituição Federal de 1946, até a de 1988.

Sendo a anistia um ato eminentemente político, tanto que inscrita no capítulo dedicado ao Poder Congressual, e não do Poder Judiciário e nem ao do Executivo, tem caráter amplo, irrecusável, e de per se, irrevogável.

Até porque, os maiores prejudicados com a revogação da lei benéfica, seriam aqueles que teriam sido o alvo principal da lei, pois que, ficariam, sem dúvida, desnudos de sua veste protetora.

E assim sendo, sob o risco de terem que ver suas atitudes examinadas pelo Poder Judiciário.

Sendo, portanto, a anistia, segundo Ruy Barbosa, "o véu de eterno esquecimento", e de Barbalho a “núncia de paz e conselheira de concórdia, parece antes, do céu prudente aviso, que expediente de homens”, não há como se alterar o ato de benemerência postulado pelo povo e dado pelo Estado, pena de se estar demonstrando, através de casuísmos, a existência daquilo que, paradoxal e ironicamente, Mao Tsé-Tung denominou de “a ditadura democrática.”

Artigo publicado na Revista Magister de Direito Penal e Processo Penal nº 21, www.editoramagister.com, por Amadeu de Almeida Weinmann – Advogado, Professor de Direito, Membro do Instituto dos Advogados do Rio Grande do Sul, Membro do Instituto dos Advogados Brasileiros do Rio de Janeiro, Portador da Medalha Osvaldo Vergara, no grau de Comendador, Membro Fundador da Associação Brasileira de Advogados Brasileiros e associado à ACRIERGS – Associação dos Advogados Criminalistas do Rio Grande do Sul.

[3] Carlos Maximiliano – ‘in’ Comentários a Constituição Brasileira, pág. 471, 3ª Edição, Ed. Livraria do Globo, Porto Alegre, 1922.

[4] Carlos Maximiliano – op. cit. pág. 467.

[5] Carlos Maximiliano – op. cit., c/ referência à obra de George Perrot – ‘in’ Essai sur de Droit Public d’Athènes, 1869, pág. 209, nota 1.

[6] João Barbalho U. C. – Constituição Federal Brasileira – Comentários – pág. 179, 2ª Edição, F. Bruiguiet & Cia. Editores, Rio de Janeiro, 1924.

[7] Anaurelino Leal – Theoria e Prática da Constituição Federal Brasileira, pág. 752, Ed. F. Briguiet & Cia. Editores, Rio de Janeiro, 1025.

[8] Anaurelino Leal – op. cit. pág. 752.

[9] Carlos Maximiliano – op. cit. pág. 555.

[10] José Affonso Mendonça de Azevedo – A Constituição Federal Interpretada pelo Supremo Tribunal Federal, Pág. 96, Ed. Typ. Da Revista do Supremo Tribunal, Rio de Janeiro, 1925.

[11] Ruy Barbosa – Comentários À Constituição Federal Brasileira, pág. 442/443, vol II, Ed. Saraiva & Cia. 1933, São Paulo.

[12] Themístocles Brandão Cavalcanti – A Constituição Federal Comentada, pág. 133, Ed. José Confino, 1948, Rio de Janeiro

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